A Interpretação contra o Predisponente Contratual (contra proferentem) e a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019)

A Interpretação contra o Predisponente Contratual (contra proferentem) e a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019)

1. INTRODUÇÃO

Com a industrialização, tivemos uma grande concentração urbana e grandes desigualdades sociais, criando uma sociedade de massas, onde se fez muito difícil a manutenção de negociações individualizadas dos contratos, fazendo com que os termos fossem predeterminados pelas partes economicamente e socialmente mais fortes, de forma que, apenas cabe ao destinatário aderir ou recusar, desaparecendo o diálogo (ASCENSÃO, 2003).

A ideia de liberdade absoluta dos contratos aos poucos foi desaparecendo, fazendo com que princípios como autonomia da vontade, obrigatoriedade dos contratos e liberdade contratual, tenham que se harmonizar com novos princípios, como a boa-fé objetiva (LUPION, 2014, p. 407).

Neste sentido, regras de interpretação são balizadores de resolução de conflitos provenientes dos contratos, principalmente aqueles em que decorrem da falta de paridade entre as partes. Assim, a hermenêutica jurídica consiste na teoria cientifica da interpretação, almejando a aplicação e integração do Direito, submetendo fatos através da atividade complexa que correlaciona aspectos fáticos, normativos e valorativos (AMARAL, 2016, p.1).

Amaral (2016) alerta que a interpretação deve atender uma lógica sistematizada para que o Direito possa atingir os anseios sociais. Logo, a hermenêutica, além de observar a técnica do silogismo, deve observar a finalidade para qual foi criada, com fito de desenvolver um raciocínio voltado a justiça. A interpretação se refere a aplicação no confronto com caso concreto através de enunciados já estabelecidos pela ciência da Hermenêutica. Interpretar é descobrir o sentido de determinada norma jurídica ao aplicá-la ao caso concreto (SOUZA, 2016, p. 3).

Souza (2016) ensina que a ambiguidade do texto, a má redação, a imperfeição, a vagueza, a falta de terminologia técnica, obrigam o operador do direito, a todo instante, a interpretar a norma jurídica buscando encontrar seu real significado, antes de aplicá-la ao caso sob discussão.

É dentro deste contexto que a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) introduz no Código Civil de 2002 o art. 113, parágrafo 1º, inciso IV, que estabelece que qualquer dúvida interpretativa acerca de determinada cláusula deve ser resolvida em desfavor de quem a redigiu em todos os contratos do ordenamento brasileiro.

Antes da entrada em vigor da Lei 13.874/2019, a interpretação contra o predisponente era prevista no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor apenas para os casos referentes a dúvidas interpretativas em contratos de adesão. A par disto, o presente artigo tem como objetivo discutir e refletir sobre a aplicação da interpretação contra o predisponente ou interpretatio contra proferentem no âmbito dos contratos.

2. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

2.1. CONCEITOS

A interpretação contra o predisponente (contra proferetem) consiste na ideia de que a cláusula contratual mal redigida, ambígua ou abusiva deve ser interpretada em desfavor da parte que redigiu.

Em outras palavras, esse regramento da interpretação contra o predisponente expressa-se através da premissa de que o contrato será interpretado em desfavor de quem redigiu os pontos que geram divergência ou desequilíbrio contratual entre as partes (ALBUQUERQUE, 2019; PETRUCCI, 2018). Trata-se de um privilégio interpretativo em desfavor do predisponente nos contratos, consistindo num cânone hermenêutico contratual fundamental. (ALBUQUERQUE, 2019; PETRUCCI, 2018)

Neste passo, o referido fundamento hermenêutico coloca o risco da ambiguidade, da falta de clareza e de aviso, na parte redatora, que poderia ter evitado a controvérsia, salvaguardando a outra parte de armadilhas ocultas contratuais que não são de sua autoria (FLYNN, 1980, p. 381, tradução nossa)

Sua aplicação decorre do princípio da Boa-Fé Objetiva presentes nos art. 113 e 422 do Código Civil, que assume três grandes funções: a função de restritiva ou de controle; a criadora de deveres anexos a prestação principal; e a interpretativa (NASCIMENTO, 2017, p. 11). A função interpretativa dos contratos garante que os contratos e suas cláusulas sejam interpretados em harmonia com os objetivos do comuns buscados pelas partes durante a celebração do contrato, conforme disposto no art. 113 (NASCIMENTO, 2017, p. 11).

Por sua vez, a função restritiva, cria limites do exercício dos direitos das partes, assegurando que tal exercício não se manifeste de forma abusiva ou contraditória a boa-fé, aos bons costumes ou ao seu fim econômico, conforme o art. 187 do Código Civil (NASCIMENTO, 2017, p. 11).Por fim, a função criadora de deveres nas fases pré-negocial, negocial e pós-negocial objetiva incentiva a cooperação entre as partes contratantes em todos os momentos da relação jurídica, impondo deveres como o de lealdade, proteção, cuidado, esclarecimento e informação (NASCIMENTO, 2017, p. 11).

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor em 11 de setembro de 1990, tivemos a edição de normas de ordem pública estabelecendo parâmetros interpretativos e reguladores das relações de consumo. Fruto desta preocupação legal, temos um rol de artigos referentes a cláusulas abusivas como as elencadas no art. 51; o princípio interpretatio contra proferentem extraído do art. 47; e o direito à informação clara do contrato disposta no art. 46, dentre outros (CAPELOTTI, 2009, p. 4)

Importante destacar que o referido art. 51, inciso IV, estabelece a nulidade de pleno direito de obrigações iniquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou incompatíveis com a boa-fé ou a equidade, principalmente referente a contratos de adesão, que fundamenta também a aplicação da interpretação contra predisponente contratual.

Com Código Civil de 10 de janeiro de 2002, tivemos a introdução do art. 423 que determina que quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

Orlando Gomes (1995) leciona que o que caracteriza o contrato de adesão é que aquele a quem é proposto o contrato não pode deixar de contratar, porque tem a necessidade de satisfazer um interesse, que por outro modo, não poderia ser atendido. Neste sentido, uma pessoa que precisa viajar, provavelmente se submeterá as condições estipuladas pela empresa transportadora, pois não lhe resta outra possibilidade. Estas circunstâncias influenciam na interpretação de suas clausulas.

Capelotti (2009) ensina que existe estreita correlação entre contratos de massa e cláusulas abusivas, já que resultam de reduzido poder de discussão dos termos contratuais, pautados no domínio econômico de uma parte sobre a outra, definindo um campo propicio para vantagens indevidas, por isso a importância de regulação e fiscalização pelo Estado.

Nos casos que se referem ao contrato de adesão, temos a formação contratual de acordo com a vontade de apenas uma das partes do negócio jurídico, não havendo colaboração na construção do acordo pactuado.

No que se refere ao elemento da predisposição, não é necessário que as cláusulas tenham sido fixadas anteriormente por escrito, importando apenas que tenham sido elaboradas preconcebidas de antemão, tomando como referência o momento de início da fase de negociação contratual (MOTA, 2016, p. 3)

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2.2. HISTÓRICO

Inicialmente, o requisito primordial estava fundamentado na formulação unilateral por parte de um dos contratantes, onde a colaboração entre as partes foi substituída por formulação prévia de apenas uma das partes, de formação, em parte ou no todo, do futuro regramento (MOTA, 2016, p. 3).

Flynn (1980) ensina que outro aspecto relevante da regra interpretativa contra o predisponente nos contratos é que se trata de mecanismo eficiente que equilibra e concilia acordos estabelecidos unilateralmente, principalmente aqueles referentes a contratos de adesão, em detrimento da parte mais forte da relação.

Mota (2016) delineia que esse princípio era utilizado inicialmente no ordenamento romano para delimitar o risco nos pactos de arrendamento e compra e venda. Com o Cristianismo, generaliza-se, criando vínculo com princípio da boa-fé. Constituiu-se como ferramenta de controle de conteúdo por via indireta, capaz de resolver disfunções da contratação em massa, não compreendidas nas cláusulas abusivas expressas.

Petrucci (2018) afirma que a origem histórica deste instrumento hermenêutico advém de Roma, pela qual Emílio Papiniano, jurista romano, escreveu no século II a.C, os chamados veteres, que estabeleciam que os pactos ambíguos e obscuros, prejudicariam o vendedor ou o locador, pois de seu poder decorria o ônus de escrever o contrato de forma clara.

Neste aspecto, o Código Napoleônico de 1804 trouxe nove artigos convencionando e sistematizando regras de interpretação dos contratos. Dentre eles, o art. 1.162 determinava que em caso de dúvida, o contrato deveria ser interpretado contra o estipulante e a favor de quem havia contratado (PETRUCCI, 2018, p. 297).

Petrucci (2018) traz ainda que em 2016, o ordenamento francês manteve esta disposição em seu artigo 1.190, explicando melhor o âmbito de sua aplicação, distinguindo contratos de adesão de contratos entre partes paritárias.

Lupi (2019) complementa explicando que a solução adotada pela atual legislação francesa, no art. 1190, foi pela aplicação da regra contra proferentem apenas nos contratos de adesão. Já nos contratos negociados, prevalece a interpretação em favor do devedor (LUPI, 2019, p. 341).

Destarte, a Alemanha não adotou de modo explícito o critério da interpretação contra o predisponente nos contratos, tendo sua existência extraída do §157 do Código Civil, que determina que o contrato deve ser interpretado com base nas situações individuais do caso e na boa-fé entre as partes (PETRUCCI, 2018, p. 298).

A partir do Século XIV e XV, muitas regras de origem do direito romano influenciaram o common law inglês, dentre elas, o contra proferentem (PETRUCCI, 2018, p. 298).

No âmbito do direito dos Estados Unidos, Flynn (1980) ensina que a regra do contra stipulatorem, no entanto, não encontra aplicação pelos tribunais simplesmente porque um problema interpretativo é encontrado na linguagem contratual.

A regra de interpretação contra o predisponente só é utilizada de forma secundaria, quando o significado da linguagem do contrato – e, portanto, a intenção das partes – ainda está em dúvida após o tribunal ter considerado todo o processo comum de interpretação, incluindo todos os usos existentes, gerais, locais, técnicos, costumeiros, de comércio, bem como pesando devidamente todas as circunstâncias e comunicações relevantes entre as partes (FLYN, 1980, p. 380).

2.3. REGRAMENTO DA INTERPRETAÇÃO CONTRA PREDISPONENTE NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS PARITARIAS

A aplicação da interpretação desfavorável ao predisponente não se aplicava aos contratos paritários, visto que, em regra geral, temos uma igualdade de condições entre as partes contratuais.

O art. 421-A do Código Civil institui que contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, podendo as partes negociantes estabelecerem parâmetros objetivos para interpretação de cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão e de resolução.

A Lei Nº 13.874 de 20 de setembro de 2019, a chamada Lei da Liberdade Econômica, instituiu a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, buscando estabelecer normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica.

Neste sentido, ela introduz no Código Civil o art. 113, parágrafo 1º, inciso IV, que estabelece que a interpretação do negócio jurídico deve ser atribuída no sentido que for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável, se aplicando a todos os contratos do ordenamento jurídico, incluindo os empresariais.

Ademais, cabe trazer a exposição de motivos da Medida Provisória 881/2019, que mais tarde foi convertida na Lei nº 13.874/2019, ao incluir tal dispositivo no Código Civil. Vejamos:

16. Para a expansão da segurança jurídica das relações privadas, está presente a inserção explícita da regra do “contra proferentem”, sobre a interpretação de todos os contratos, antes limitados – explicitamente – aos de adesão. Essa regra estipula que a dúvida sobre a interpretação de um contrato beneficia a parte que não redigiu a cláusula disputada, derivando-se, conforme doutrina comparativa no direito continental (civil law), do princípio de que ninguém será beneficiado pela própria torpeza – regramento já parte do ordenamento jurídico brasileiro, conforme pesquisa presente nas Notas Técnicas. Essa lógica dá amparo à ideia de que quem redige uma cláusula não deve auferir benefício de tê-la feito de maneira dúbia, buscando a eliminação de incentivos perversos, conforme assegura a moderna doutrina da análise econômica do Direito. Essa previsão acaba também por valorizar o papel do advogado, na forma do art. 133 da Constituição, sobre os modernos e sofisticados processos de elaboração de contratos privados. Com essa medida, mais esforços serão destinados a evitar conflitos e, então, menos disputas serão instauradas, reduzindo significativamente os custos que tais conflitos impõem ao Judiciário e ao País em geral.

Conforme visto anteriormente, antes da entrada em vigor da Lei 13.874/2019, a interpretação contra o predisponente era prevista no Código Civil apenas para os casos referentes a dúvidas interpretativas em contratos de adesão.

O Código Comercial de 1850 estipulava uma série de regramentos hermenêuticos no âmbito dos contratos comerciais no seu art. 131 e incisos, como predominância da vontade das partes; boa-fé, harmonia das disposições contratuais e comportamento dos contratantes, dentre outros (ALBUQUERQUE, 2019, p. 1). Contudo, com o Código Civil de 2002 esse regramento foi revogado, sendo substituído por regramentos mais simples e em grande parte insuficientes (ALBUQUERQUE, 2019, p. 1).

Ademais, ao revogar parcialmente o Código Comercial de 1950, o Código Civil de 2002 assume para si a unificação do direito das obrigações, substituindo a teoria dos atos de comércio pela teoria da empresa, fazendo com que a doutrina passasse a distinguir contratos firmados entre empresários dos civis e de consumo (TAVARES, 2017, p. 11). Albuquerque (2019) leciona que a Lei 13.874/2019 restabelece e revitaliza o antigo art. 131 do Código Comercial, incluindo os parágrafos 1º, 2º e incisos no art. 113 no Código Civil de 2002.

Trata-se de um ponto inovador, já que em algumas negociações pode ser muito difícil estabelecer quem inseriu determinado vocábulo ou estipulou a redação final (VENOSA, RUAS, 2019).   Em contratos complexos, as partes envolvidas realizam diversos ajustes, incluindo e excluindo diversos termos, tornando a identificação da autoria de certo termo uma tarefa árdua (VENOSA, RUAS, 2019). 

Venosa e Ruas (2019) destacam que independentemente do negócio jurídico, identificando-se a parte que redigiu o termo obscuro ou ambíguo, este não pode ser beneficiado pela sua torpeza.

Outro aspecto relevante trazido pela Lei 13.874/2019 é o art. 421-A, inciso I, que garante que as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução, fomentando ainda mais a relação de confiança entre as partes no negócio jurídico, fornecendo mecanismos de resolução de conflitos expressos no contrato.

De acordo com Corrêa (2019), a introdução do regramento do contra proferentem tratou-se de grande inovação no direito contratual brasileiro, já que é um ponto que dificilmente seria regulamentado pelas partes contratualmente.

Desta forma, a interpretação contra o predisponente não ficará mais restrita aos contratos de adesão, se aplicando todo negócio jurídico, incluindo aqueles em que as partes se encontram em posição igualitária, já que no âmbito do Direito do Consumidor temos uma presunção relativa de vulnerabilidade do consumidor.

Critérios interpretativos como esse incentivam a boa-fé entre as partes, com uma relação jurídica pautada na confiança e lealdade, punindo aqueles que vão de encontro ao bom funcionamento do ordenamento jurídico, buscando locupletar-se da ambiguidade, obscuridade e imprecisão que deram causaram.

Com a alteração feita mediante a Lei da Liberdade Econômica, durante as negociações contratuais, será da mais relevante importância o registro das alterações, contendo quais partes ou trechos das cláusulas cada parte respectivamente redigiu. Se fará relevante para dirimir qualquer eventual litígio num futuro próximo.

Outro aspecto relevante a ser destacado é a possibilidade de as partes estabelecerem critérios hermenêuticos para preenchimento de lacunas e para integração dos negócios jurídicos, de forma a fornecer ferramentas e instrumentos para resolução de conflitos contratuais.

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2.4. JULGADOS ACERCA DA TEMATICA

Neste aspecto, considerando a recente inserção do inciso IV do art. 113 do Código Civil, cabe trazer algumas decisões judiciais acerca da temática. Vejamos decisão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, no processo 1094279-25.2018.8.26.0100:

Apelação. Direito Empresarial. Franquia. Rescisão contratual por culpa do franqueado. Controvérsia limitada à imposição de perdas e danos prefixados em R$ 10.000,00, fundada na culpa. Cláusula penal ambígua. “Ambiguitas contra stipulatorem est”. “Interpretatio contra proferentem”. No conflito entre duas cláusulas, a contradição prejudica o outorgante e não o outorgado. Hermenêutica do instrumento contratual deve ser favorável à parte que não redigiu o instrumento. Contrato de franquia classificado como “contrato por adesão” e não “contrato de adesão”. Inteligência do art. 113, IV, do Código Civil. Franqueado condenado ao pagamento das obrigações pecuniárias vencidas, concernentes aos royalties e ao fundo de publicidade. Cumulação de perdas e danos com cláusula penal de natureza ressarcitória implica enriquecimento sem causa. Sentença mantida. Apelo desprovido (TJ-SP – AC: 10942792520188260100 SP 1094279-25.2018.8.26.0100, Relator: Pereira Calças, Data de Julgamento: 19/05/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 19/05/2020)

No caso em tela, a cláusula penal, da forma imprecisa que foi escrita, era composta de três fases: a primeira estabelecendo pena genérica para o descumprimento contratual; a segunda trazendo pena específica para inadimplemento da obrigação de exclusividade dos fornecedores; e a terceira prefixando um valor referente a perdas e danos.

A cláusula em questão não deixava completamente claro quais as hipóteses de aplicação da multa contratual por inadimplemento de obrigação. Desta forma, o juízo de primeiro grau sentenciou no sentido de que a interpretação mais adequada ao caso seria a de que o referido dispositivo se refere à hipótese de descumprimento da obrigação de exclusividade dos fornecedores homologados pela franqueadora, não sendo devido a concessão da multa por qualquer descumprimento contratual, como pleiteava o franqueador.

Em sede recursal, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo concluiu que a redação da cláusula penal do contrato de franquia gerava diversas dúvidas quanto a sua aplicação. Diante deste questionamento acerca da hermenêutica do instrumento contratual, aplicou-se a interpretação mais benéfica à parte que não redigiu o dispositivo, nos termos do art. 113, inciso IV do Código Civil.

O órgão colegiado também aplicou o critério hermenêutico previsto no inciso V do art. 113 do Código Civil, avaliando o dispositivo através do critério do que seria razoável a negociação entre as parte sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.

Assim, o Tribunal entendeu que os critérios interpretativos elencados convergem no sentido de que a cláusula penal deveria ser aplicada apenas nas hipóteses de descumprimento da obrigação de exclusividade, o que não ocorreu no caso concreto. Nesse aspecto, cabe trazer parte do raciocínio utilizado pelos magistrados na resolução do caso em questão. Vejamos:

Cumpre realçar que a relação contratual “sub judice” não é de natureza consumerista, mas sim de caráter interempresarial. Anote-se, porém, que a interpretação favorável ao franqueado decorre de regra que, de forma inovadora, atualmente encontra-se expressamente prevista no art. 113, IV, do Código Civil, consoante recente alteração promovida pelo Parlamento, que apenas insere no Código Reale uma das mais antigas normas de hermenêutica contratual, originada do sistema greco-romano (TJ-SP – AC: 10942792520188260100 SP 1094279-25.2018.8.26.0100, Relator: Pereira Calças, Data de Julgamento: 19/05/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 19/05/2020)

Em caso diferente, a 1ª Vara Federal de São Carlos também entendeu pela aplicação da regra do art. 113, IV, aplicando a hermenêutica contratual desfavorável a parte que redigiu os termos do pacto.

Admite-se que a redação do aditivo é ambígua e que, talvez, o advogado tivesse razão, isto é, de que os 20% “do que vier a receber” (o autor) se refere a todo o proveito econômico. Porém, considerando que a oportunidade do aditivo adveio do deferimento da antecipação de tutela, é plausível que o proveito econômico auferido à ocasião se remunerava pelas parcelas exigíveis já naquela época. De toda forma, ambíguo que seja o contrato de honorários, não há dificuldades em identificar o advogado como o redator intelectual do aditivo (seja, novamente, pela oportunidade do deferimento da antecipação de tutela, seja por ser incomum o acréscimo de honorários por iniciativa do cliente), caso em que a ambiguidade deve ser resolvida em favor de quem não redigiu a avença, isto é, o cliente. Afinal, ainda que não expressa a lei vigente à época (Código Civil, art. 113, § 1º, IV, incluído pela Lei nº 13.874/19), trata-se de diretriz de interpretação contratual (interpretatio contra proferentem) implícita na cláusula geral de boa-fé. Indefiro o requerimento de ID 26928966 e considero eficaz a cessão informada. (JFSP. 5001033-73.2018.4.03.6115. Juiz Federal Luciano Pedrotti Coradini. DJ: 19/03/2020. JusBrasil, 2020. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/288240370/trf-3-judicial-i-interior-19-03-2020-pg-895?ref=serp>. Acesso em: 03 ago. 2020)

Nesta demanda, o advogado aduziu fazer jus ao pagamento de 20% de todo proveito econômico de seu cliente, ora exequente no processo, incluindo o montante recebido em sede de tutela antecipada.

Analisando os autos, o juiz averiguou que o aditivo contratual de honorários advocatícios que previa o pagamento de 20% de todo proveito econômico, aconteceu após o pagamento do montante recebido em tutela antecipada, não deixando claro se o referido valor estaria incluso no quanto estabelecido.

Sendo a redação imprecisa, se referindo apenas a valores a receber no final do processo, o juiz entendeu pela aplicação da interpretação desfavorável ao predisponente contratual, que no caso se refere ao advogado. Logo, entendeu-se que o percentual de 20% de honorários advocatícios não se aplicava ao montante recebido em tutela antecipada.

O Juiz Federal Luciano Pedrotti Coradini ressaltou em sua decisão que apesar de não expressa na lei vigente a época da formação do contrato entre as partes, já que o art.113, inciso IV, do Código Civil apenas foi inserido em 2019 pela Lei 13.874, trata-se de princípio hermenêutico fundamental, implícito no princípio e cláusula geral de boa-fé.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação contra predisponente se mostra como um balizador, um orientador aos juristas na resolução de conflitos desde o século II a.C. Seus preceitos persistiram ao longo tempo, influenciando as relações jurídicas em todo âmbito internacional.

Critérios interpretativos como esse incentivam a boa-fé entre as partes, com uma relação jurídica pautada na confiança e lealdade, punindo aqueles que vão de encontro ao bom funcionamento do ordenamento jurídico, buscando locupletar-se da ambiguidade, obscuridade e imprecisão que deram causaram.

Com a alteração feita mediante a Lei da Liberdade Econômica, durante as negociações contratuais, será da mais relevante importância o registro das alterações, contendo quais partes ou trechos das cláusulas cada parte respectivamente redigiu. Se fará relevante para dirimir qualquer eventual litígio num futuro próximo.

Outro aspecto relevante a ser destacado é a possibilidade de as partes estabelecerem critérios hermenêuticos para preenchimento de lacunas e para integração dos negócios jurídicos, de forma a fornecer ferramentas e instrumentos para resolução de conflitos contratuais.

Na hipótese em que as partes buscam mitigar os riscos decorrentes da interpretação contra o predisponente, é possível com base no art. 421-A, as partes declararem que a elaboração e redação do contrato se deu de forma conjunta e compartilhada, criando um elemento contratual que pode afastar sua aplicação.  

O princípio do interpretatio contra proferentem demonstra-se como um mecanismo hábil para resolução de conflitos resultantes de disputas contratuais, junto com outros parâmetros como o comportamento das partes posteriormente a celebração do acordo, os usos, costumes e práticas do mercado relativas a aquele negócio, bem como a boa-fé.

A partes contratuais terão de ter um cuidado redobrado no momento de redigir as cláusulas do acordo, almejando evitar possíveis vícios, incentivando a redação clara e precisa.

4. REFERÊNCIA

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AMARAL, Thais Cordeiro do. A Importância da Hermenêutica para o Direito. Jurisway, [s. l.], 24 maio 2016. Disponível em: <https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=17148#:~:text=%22a%20hermen%C3%AAutica%20jur%C3%ADdica%20tem%20por,uma%20teoria%20cient%C3%ADfica%20da%20interpreta%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 5 ago. 2020.

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CAPELOTTI, JOÃO PAULO, Contratos de adesão e condições contratuais gerais, 2009 in <http://www.facef.br/novo/publicacoes/IIforum/Textos%20IC/Joao%20Paulo%20Capelotti.pdf> (20.06.2013)

COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial: Direito de Empresa. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

CORRÊA, Leonardo. Contratos e a MP da liberdade econômica. Consultor Jurídico, [S. l.], p. 1, 1 set. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-01/leonardo-correa-contratos-mp-liberdade-economica?>. Acesso em: 5 ago. 2020.

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LUPI, André Lipp Pinto Basto. Os contratos comerciais na Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica (MP 881/19). Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 9, n. 1 p.333-350, 2019

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