1. INTRODUÇÃO
No decorrer da história da humanidade, da organização mais simples até as mais complexas, nos deparamos com lutas por direitos. Vivemos a Era dos Direitos proposta por Bobbio (2004), mas não necessariamente a efetividade deles. E os diversos movimentos sociais mundiais são responsáveis, e muito, pela (re)construção de novas realidades que foram sendo moldadas no decorrer da história. O mundo hoje é aclamado pelos inúmeros movimentos que objetivam implantar, proteger e efetivar direitos, muitas vezes, essenciais. O Movimento Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis foi fundado com esse intuito e visa em sua essência dar visibilidade a uma força de trabalho marginalizada, renegada como verdadeiro capital humano invisível. O direito à emancipação sustentável (social, econômica e ecológica) é base orientadora das relações éticas, em um ambiente no qual o sujeito somente é reconhecido como cidadã(o) se for partícipe e, por consequência, cúmplice do processo de produção, consumo e propagação do excedente do sistema capitalista.
Este estudo parte do pressuposto que Direito Ambiental, Direito à Cidade e Direitos Humanos estão conectados e que, portanto, problemas sistêmicos precisam de soluções sustentáveis que possuem origem em bases de educação ambiental e expansão de consciência. Não é possível debater sociedades sustentáveis sem justiça ambiental, da mesma forma que não é possível falar em justiça ambiental sem debater seriamente racismo ambiental. E o estágio de analfabetismo ambiental que a sociedade se encontra é causadora da vulnerabilidade social que atinge essas catadoras e, por consequência, suas famílias. (LUZ, 2019, A-3). O desafio é sem dúvida o alcance de uma justiça social sustentável diferente do paradigma dialético vigente, “para quem está inserido no processo de produção e consumo: tudo; àqueles/as que vivem à margem da sociedade – alienados/as de políticas protetivas: o vazio.” (CAVALCANTI; SILVA, 2019, p. A-3)
Este estudo investiga a (in)(ex)clusão das catadoras de materiais recicláveis, vulneráveis descartáveis à luz da (in)sustentabilidade humana em uma sociedade que caminha para o mecanismo lixo zero[1]. A partir do conceito do termo, o objetivo é discutir até que ponto essa inovação (aparentemente) mais sustentável é ética e eficiente também do ponto de vista da inclusão social e não apenas um processo de automação da indústria do lixo para descartar vulneráveis. A proposta analisa a teórica metamorfose e emancipação social (in)sustentável das catadoras diante da visão de (pseudo) evolução da categoria para além da sobrevivência em uma sociedade lixo zero.
Desse modo, o desenvolvimento deste trabalho está subdividido em três partes. A primeira parteoferece alicerces conceituais e históricos da Política Nacional de Resíduos Sólidos e do Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável e sua relação com as personagens principais dessa trama: as catadoras. Assim, será analisada de que forma a atividade das catadoras vem se institucionalizando no Brasil desde como uma prática social, econômica, ambiental e política, de acordo com mecanismos que garantem a sua invisibilidade na sociedade. Para tanto, visa demonstrar o que ocorre no estado de entorpecimento de uma categoria quando um rebanho cego é conduzido até o abatedouro sem ter consciência do caminho que percorre, conduzido como massa de manobra através do labirinto da história.
Na segunda parte,mostrará a informalidade do trabalho das Catadorase seu sonho sur(real) do lixão ao empreendedorismo, além da (pseudo) contribuição promovida pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) no processo de empoderamento e emancipação das catadoras. Este capítulo demonstrará se a experiência de organização social dos catadores de materiais recicláveis contribui para diminuir a invisibilidade social através da construção de suas identidades, autoestima, sentimento de pertencimento ao possibilitar a coordenação de suas ações coletivas as quais os catadores se encontram engajados, os permitindo reconhecerem-se enquanto autores de seus destinos. E ao passo que as atividades de engajamento ocorrem, a pauta de reivindicações gera conflitos socioambientais de interesses entre catadores, cooperativas, empresas de reciclagem, Estado e Sociedade Civil. No mesmo capítulo será demonstrada a falácia social, das leis, política e econômica que transforma o catador em mera mercadoria descartável como o lixo.
E, por fim, na terceira parte, mostrará o processo de (ex)inclusão do mercado de trabalho (in)formal, discutindo-se a (im)possibilidade da (re)construção de uma real sociedade sustentável pautada no reconhecimento do sujeito ético moral e na valorização do capital humano. Demonstrará a presença da catadora na era digital e os exemplos de mecanismos tecnológicos existentes, analisando até que ponto o aplicativo Cataki e a organização Pimpmycarroça proporcionam uma melhoria socioeconômica aos catadores cadastrados e contribuem para o seu processo de emancipação (in)sustentável.
Na conclusão, visa restar demonstrada a importância da responsabilidade recíproca do Estado, sociedade civil e indivíduos imersos na ilusão de uma sociedade do espetáculo fetichista, produto do sistema de reprodução social do capital, que a tudo transforma em mercadoria. E em paralelo ao emaranhado labiríntico dessa trama, o fio condutor transparece ser o reconhecimento de que tudo não passa de um processo histórico, portanto mutável, e que o despertar de uma nova concepção de mundo através de uma aventura emancipatória sustentável parece ser (im)possível. Para tanto, a metodologia foi pautada na revisão de literatura nacional e estrangeira, e seus respectivos casos concretos sociais e históricos.
2. O MOVIMENTO DE UMA ONDA: CADA CONCHA CONTA NO MAR DE LIXO
Assim como a onda retorna para o infinito oceano, todo o resíduo gerado por cada ser humano deveria retornar à cadeia produtiva para compor matéria prima orgânica ou a geração de novos produtos para a indústria. E nesse processo de logística reversa proposto pela lei de resíduos sólidos, cada resíduo conta, pois é sempre menos um lixo descartado em locais inapropriados para a reciclagem. A reciclagem pressupõe coleta seletiva. E a coleta seletiva no Brasil, há décadas, vem sendo realizada informalmente por catadores avulsos.
A categoria dos catadores que (sobre)vivem dos resíduos não é recente no Brasil. Eles estiveram presentes no registro do poeta Manuel Bandeira, em 1947, quando escreveu “O Bicho” para denunciar pessoas no submundo da catação de restos de comida (Bandeira, 1993). Todavia, os personagens do poeta não eram catadores de materiais recicláveis. Eles estavam no ápice das vidas precárias (Butler, 2016) em busca de comida e não de recicláveis para revender como mercadoria. A atividade de catar alimentos e material reciclável para (sobre)viver foi retratado no Brasil por Marcos Prado, no documentário Estamira (2004). Nesse documentário conta a história de uma mulher invisível que cata no lixão seus sonhos e sentido para viver. No entanto, viver com dignidade do lixo em condições precárias de trabalho, sem moradia, sem inclusão no processo de gestão dos resíduos parece ser uma emancipação insustentável e utópica.
O estudo de Grossi (2003) realiza uma etnografia dos catadores e demonstra que muitos se percebem como parte do lixo, revelando sentimentos depreciativos e de baixa autoestima cultivados pela própria elite através do “ódio aos pobres” (Souza, 2017). Para Pereira e Goes (2016) os trabalhadores que atuam nas atividades de catação de materiais recicláveis são notados como vagabundos ou delinquentes e essas representações possivelmente resultam da ausência de interesse na compreensão da situação da categoria e, por consequência, na busca por modificar tal realidade.
Em 2010, a Lei 12305/2010 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, PNRS, trazendo como norte o seu VIII princípio, que afirma o resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho, renda e também promotor de cidadania. A questão das atividades exercidas pelos catadores de materiais recicláveis é tratada pela PNRS como fundamental para o adequado manejo dos resíduos sólidos, já que recolhem material descartado, que pode ser reaproveitado no processo produtivo, diminuindo o uso de novos recursos naturais. Catadores contribuem para a reciclagem e se faz necessária à inserção de novos conceitos de valorização social e econômica desta categoria profissional, garantindo padrões de produção e de consumo sustentáveis.
Vale salientar que desde 09 de outubro de 2002, a ocupação de catador de material reciclável se encontra regulamentada pela Portaria nº 397, na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO. Essa profissão possui o reconhecimento do Ministério do Trabalho e Emprego, que descreve suas atividades como aquelas que contribuem para o aumento da vida útil dos aterros sanitários e para a diminuição da demanda por recursos naturais, na medida em que abastece as indústrias recicladoras para reinserção dos resíduos em suas ou em outras cadeias produtivas. As atividades podem ser exercidas individualmente ou coletivamente, preferencialmente organizadas em cooperativas/associações.
Apesar desse reconhecimento legislativo não conseguiu evitar que a atividade continuasse a ser estigmatizada e discriminada pela sociedade do espetáculo. Diante da invisibilidade social em que se encontram, faltam dados de registro da categoria. No entanto, um breve passeio pela literatura, artigos e periódicos é capaz de assinalar que a maioria dos catadores são mulheres e possuem baixa escolaridade e, por essa razão, que o recorte dessa análise é através das mulheres catadoras.
O debate sobre o desenvolvimento de projetos de políticas públicas, particularmente no âmbito social, muitas vezes recai na atuação unilateral estatal, como responsável e provedor único, dotado legalmente de recursos para esta finalidade. Cabe um questionamento: de que forma as organizações e os cidadãos podem se inserir no processo de elaboração e execução dos projetos políticos e sociais, em especial na implementação da crescente filosofia lixo zero ao redor do mundo?
Enquanto acontece o debate de como devem ser desenvolvidos estes projetos, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR – denuncia ausência de apoio do poder público, das empresas e da sociedade. O dia 7 de junho é celebrado como dia Nacional dos Catadores e Catadoras de Material Reciclável, mas os trabalhadores desta atividade não vêm tendo o que comemorar e muitos deles sequer possuem conhecimento do movimento que os representa pela falta de sentimento de pertencimento à própria categoria. O MNCR acredita que o prazo para a categoria ser reconhecida e valorizada ainda se encontra distante.
3. DA ESCURIDÃO DO LIXÃO AO FETICHE DA LUZ DO EMPREENDEDORISMO NA GLOBALIZAÇÃO 4.0
Os “batalhadores”, nos dizeres de Jessé e Nozaki (2017), são os subcidadãos, invisíveis, que carecem de autoestima e autoconfiança. Cardoso (2010), ao falar do Estado Antissocial trouxe uma análise de como o trabalho manual foi visto como degradado historicamente pelas elites. Os catadores são, por analogia, criminalizados pelo Estado, herdando o ódio e o desprezo antes condenados aos escravos. Atualmente, os catadores são os escravos de condução dos rejeitos de tudo o que aparentemente não serve mais para a sociedade, mas paradoxalmente vale muito para a manutenção do ciclo de consumo do capital.
O capital extrai do meio ambiente sua matéria prima sem nenhum retorno benéfico, pois o seu principal foco é a produção de mais dinheiro. Desta forma, a reciclagem surge para o capital com a nítida finalidade de lucro: a mercadoria que é consumida e descartada é reutilizada ao retornar à indústria como matéria prima reciclável que será transformada em nova mercadoria em um ciclo extremamente lucrativo. Nesse ciclo, o uso da força de trabalho do catador mantém ganhos ao sistema capitalista e o legitima.
Nesse sistema acima descrito, a catadora batalhadora é explorada triplamente: pelo capital, pelo Estado e pelo indivíduo que descarta incorretamente seus resíduos. A catadora uma vez inserida na informalidade, é forçada a vender o que encontra e preços desumanos, enquanto a figura do atravessador compra na mão da catadora e repassa a mercadoria à indústria. Se formos analisar o valor de uso e o valor de troca, o item reciclável volta a ser valor de uso uma vez que retorna ao ciclo produtivo como nova mercadoria. Sem se dar conta disso, a figura da catadora é co-partícipe do processo de limpeza urbana cuja responsabilidade é do município (Estado) bem como do processo de produção capitalista. Todavia, essa importante agente ambiental não é reconhecida nem como empregada do Estado nem do capital. Ou seja, elas se encontram em espécie de limbo. Como diz Mota, “o trabalhador de rua materializa na sua atividade um trabalho duplamente explorado, pelas empresas de reciclagem e pelo próprio Estado” (2002, p. 14). E para fechar a tríade, a catadora é explorada também pelo consumidor gerador de resíduo, uma vez que este vê na catadora uma oportunidade de se desfazer do peso de algo que lhe é inútil e ainda fazer uma caridade através da doação do resíduo para alguém que vive da coleta do luxo que analfabetos ambientais chamam de lixo.
Em meio a essas metamorfoses sociais do trabalho em especial das catadoras, a literatura e as pesquisas têm retratado um número cada vez maior de excluídos sociais. Alguns autores trazem a inclusão social tomando como base o desemprego. Ou seja, estar desempregado é estar excluído do sistema. No entanto, as catadoras que trabalham em condições desumanas estariam incluídas apenas por auferirem uma renda? No ano de 2003, o governo federal criou o Comitê de Inclusão Social de Catadores de Lixo, cuja atribuição principal era de implantar projetos que buscassem garantir condições de dignidade aos catadores e catadoras de materiais recicláveis. Para Miura (2004), a maior questão na época não se tratava de reconhecimento profissional, mas sim garantir as condições humanas de trabalho para além da mera sobrevivência. Paradoxalmente, mesmo diante de tantas condições deploráveis e desumanas, o trabalho de catação proporciona a (sobre)vida de mais de 600.000 mil brasileiros segundo dados do MNCR e do IPEA (2016). O que configura um grande “exército industrial de reserva”, uma onda crescente de uma “superpopulação relativa de trabalhadores”, pois conforme Marx essa avalanche de trabalhadores estaria sem ocupação fixa, mas seria parte integrante do sistema capitalista (1988).
Do ponto de vista da estruturação e da busca pela melhoria das condições de trabalho e na ausência de apoio e visibilidade junto ao Estado, as catadoras terminam por se submeterem às cooperativas de reciclagem que oferecem um valor mais alto pelo produto, melhores condições de limpeza e segurança no trabalho. No entanto, a informalidade possui traços comuns tais como: ausência de direitos trabalhistas, flexibilização de jornada etc. No caso dos catadores e catadoras, o que se diz informal ou ilegal foi legalizado através da criação de cooperativas (Piccinini, 2004), uma vez que são isentas de diversos encargos trabalhistas. Segundo Marx, “as sociedades cooperativas e (associativas) atuais, estas só têm valor enquanto são criações independentes, realizadas pelos trabalhadores e não são protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses” (2001, p. 120). A formação de um sentimento de pertencimento ao coletivo de uma categoria de trabalhadores ocorre através da conscientização do catador e da catadora da sua importância, como diz OFFE (1984), a relação de poder original só poderá ser sentida a partir do momento que essas associações ou cooperativas conseguem formar uma identidade coletiva. Ou seja, para vigorar uma real emancipação sustentável das catadoras em uma sociedade de consumo, seria necessário implantar cooperativas com real sentido de cooperação e conforme a filosofia de base do movimento nacional: “de catador(a) para catador(a)”.
Em uma sociedade capitalista fetichista, o trabalhador se identifica como consumidor antes mesmo de se sentir cidadão. Pelo Fetiche da mercadoria, é a coisa que transmite valor ao ser humano e não o contrário. Por isso não é dada a devida importância para o lixo, pois não se enxerga valorização do status e nenhum valor de uso e nem de troca, uma vez que o lixo é visto equivocadamente pelo analfabetos ambientais como um objeto que já foi mercadoria e que não possui valor e nem preço.
Desta forma, auferir uma renda com o resíduo mesmo que em um trabalho degradante é uma forma de se sentir parte na sociedade capitalista. Mas, então, o que é ser humano no moderno sistema de (re)produção social do capital? Em analogia, a catadora utilizada como alegoria de análise para ser considerada ser humano ela precisa ser solvente. Eis o paradoxo dos direitos humanos trazido por Kurz (2003), a catadora para ser considerada humana precisa de renda para se tornar consumidora e co partícipe do sistema capitalista que a escraviza, mantendo-a sob o fetiche ecológico de agentes ambientais, quando na verdade não passam de marionetes do sistema de reprodução do capital. E a sequência da (pseudo) evolução da aventura emancipatória da catadora é se tornar empreendedora. O estado de entorpecimento proporcionado pelas mudanças sociais conforme a estratégia para manutenção do poder pelo capital incute na trabalhadora informal a falácia ilusória de se sentirem empreendedoras. Ocorre que esse sentimento, ao invés de fortalecer a categoria catadora causa um enfraquecimento de identificação com a classe, uma vez que na prática a subordinação do trabalho se mantêm, pois mesmo autônoma ou inserida no mercado predatório e precário seu capital de trabalho está inserido na lógica do capital. Para Tavares (2002, p. 113), “a estratégia é transformar trabalhadores em pequenos empresários”.
Em meio a tantas contradições e posicionamentos de pseudo liberdade, melhoria e independência que fazem um castelo de cartas construído em um mundo de fantasia ruir, Castel (1998, p. 430) traz que a “nova relação entre o aumento do salário, aumento da produção e o aumento do consumo”. Essas transformações pelas quais a sociedade contemporânea passa e que reflete na vida cotidiana de vulneráveis como os catadores não são verdadeiras metamorfoses sociais emancipatórias do ponto de vista sustentável, pois de um lado aumenta a pobreza, a desigualdade social, a precarização das relações de trabalho e o aumento da informalidade subsidiada por um crescimento maquiado de desenvolvimento (Furtado, 2002), aumento das possibilidades de consumo, conhecimento e tecnologia. Percebe-se o quanto o (pseudo) desenvolvimento emancipatório sustentável de uma categoria pode ser permeado por um processo contraditório e dialético.
Em paralelo, mas não distante desse ciclo, com o investimento e avanço em tecnologia a revolução 4.0 tem sido significativo o aumento de ações, de cunho participativo, relacionadas à inovação e às tecnologias Sociais, ao associativismo, à cooperação institucional e ao voluntariado e que visam ampliar o bem-estar e dar visibilidade ao trabalho das catadoras. Dentre essas novas tecnologias surgiu o aplicativo de celular Cataki[2], cuja ideia existe desde 2013, com o intuito de encontrar os catadores e catadoras avulsos de materiais recicláveis, facilitando o descarte correto enquanto gera renda para estes profissionais. O desafio é enorme, pois este é um aplicativo criado para encontrar um público que em sua grande maioria está off-line e, portanto, precisa do usuário para ter a devida utilidade. Conforme a descrição do aplicativo, “o Cataki é um experimento aberto e otimista (…), uma ferramenta política”, cuja intenção é gerar mais renda e aumentar o índice de reciclagem, “mas antes de tudo, para lutar por trabalho digno”. Um dos questionamentos propostos pelo aplicativo é refletir por que ainda são enterrados materiais valiosos em aterros sanitários? Por que quem realiza a sustentabilidade na prática ainda é marginalizado? O aplicativo incentiva um programa de coleta operado por catadores e catadoras e mediado pela tecnologia. Tudo de forma aberta e com a colaboração dos usuários. O aplicativo Cataki está vinculado ao Pimp My Carroça[3], um movimento que luta pelo reconhecimento dos catadores de materiais recicláveis, através do ativismo artístico. Desde 2012, o projeto já esteve em pelo menos 42 duas cidades em 12 países, com o engajamento de quase 2.000 voluntários e 750 artistas, apoiando o trabalho de mais de 850 catadores.
Diante da falta de estrutura pública em relação a coleta seletiva nas cidades brasileiras, o aplicativo foi criado para suprir a demanda das pessoas que querem reciclar e não encontram alternativas. O Cataki permite ao usuário chamar diretamente o catador ou catadora, em tese, sem nenhum intermediário. O usuário visualiza o perfil do profissional da reciclagem mais próximo e negocia a retirada e o pagamento, em tese, diretamente com o catador. A crítica que se faz atualmente é que como o aplicativo é aberto, não se sabe ao certo se quem está sendo cadastrado são atravessadores ou catadores. A segunda crítica é do ponto de vista do fetiche ecológico, uma vez que a partir do momento que o cliente chama o(a) catador(a) através do aplicativo muitos ainda não remuneram o(a) catador(a) pela coleta, como se o seu resíduo fosse uma doação ou favor a(o) catador(a). A pergunta que fica desse início de revolução 4.0 no mundo dos(as) catadores(as) é até que ponto o aplicativo conseguirá se manter com ação em prol dos(as) catadores(as), uma vez que já abriu cadastros para as cooperativas. Será o futuro do Cataki um Uber dos resíduos? Só o tempo demonstrará o que acontecerá em especial com as catadoras no decorrer da revolução 4.0. Será o ciclo de catadora à cooperada e empreendedora 4.0 um caminho de inclusão e emancipação verdadeiramente sustentável ou um retrocesso do humano?
4. CONCLUSÃO
No desfecho desta análise, pode-se concluir de maneira esperançosa, assim como David Harvey (2014), que movimentos sociais urbanos estão em andamento. As reflexões aqui expostas nos conduzem ao pensamento de Bobbio na sua obra A Era dos Direitos quando ele afirma que os direitos humanos são sistematicamente violados pelos próprios homens em suas declarações solenes que permanecem quase sempre, e quase em toda parte, letra morta. (Bobbio, 2004). O que conduz a seguinte conclusão: o problema fundamental em relação ao direito à emancipação sustentável das catadoras de luxo não é tanto do reconhecimento da sua importância, mas primeiramente da ressignificação do que se entende por lixo, resíduo. O processo educativo de emancipação sustentável precisa ser em conjunto e simultaneamente tanto das catadoras quanto da população para a separação dos materiais recicláveis. E para que essa mudança ocorra se faz necessário, nas palavras de Migueles (2004), que a sociedade perceba o(a) catador(a) como ‘um(a) outro(a) trabalhador(a) qualquer’ correlacionando com aspectos positivos. Afinal, a maneira como a sociedade vê o lixo interfere na visão que ela tem de quem trabalha com resíduos. Se não for assim, então para que buscar sentido, unidade e clareza no rostode um mundo ininteligível, desprovido de razão e reconhecimento do outro como sujeito ético-moral?
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LUZ, Laíze Lantyer. O Direito à Cidad(e)(ania) das Catadoras de Luxo: o acesso à justiça ambiental em uma sociedade lixo zero. In: FIGUÊIREDO NETO, Pedro Camilo de; VAZ JÚNIOR, Rubens Sérgio dos Santos. (Org.). Direito ambiental: velhos problemas, novos desafios. Salvador, Bahia: Editora Mente Aberta, nov. 2019. p. 103-114.
REFERÊNCIAS
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[1]Conceito Lixo Zero consoante o estabelecido pela Zero Waste International Alliance (ZWIA) que consiste no máximo aproveitamento e correto encaminhamento dos resíduos recicláveis e orgânicos. A redução, ou mesmo o fim, do encaminhamento destes materiais para os aterros sanitários ou para a incineração. Lixo Zero, portanto, é uma meta ética, econômica, eficiente e visionária para conduzir as pessoas a mudar seus modos de vida, de forma a incentivar os ciclos naturais sustentáveis, onde todos os materiais são projetados para permitir sua recuperação e uso pós-consumo (ver em http://zwia.org/).