Teoria Da Imprevisão Nos Contratos e o Coronavírus

Teoria Da Imprevisão Nos Contratos e o Coronavírus

1.            INTRODUÇÃO

O advento da pandemia do coronavírus constituiu um marco histórico sem precedentes, trazendo consigo uma série de desafios e incertezas em múltiplos setores da sociedade. Especialmente notável tem sido o seu impacto profundo e multifacetado na economia global, suscitando questionamentos pertinentes sobre as ramificações legais e contratuais decorrentes desta crise sem precedentes. Neste contexto, emergem questões cruciais relacionadas aos contratos, exigindo uma análise detalhada e criteriosa para compreender as implicações e desdobramentos legais que se desenrolam neste cenário turbulento.

Estamos vivenciando um período de profunda inquietação global, uma fase marcada por adversidades e desafios significativos, onde os sistemas de saúde ao redor do mundo enfrentam pressões extremas, muitos beirando o colapso, devido ao avanço implacável da pandemia. A repercussão dessa crise sanitária transcende os limites da saúde pública, atingindo diretamente a esfera econômica e impactando substancialmente tanto indivíduos quanto entidades jurídicas. A extensão dos danos econômicos provocados pelo coronavírus ainda é incerta, revelando um panorama de prejuízos que afeta uma variedade de contratos em diferentes áreas.

Diante dessa conjuntura, é imperativo explorar os mecanismos jurídicos existentes que são capazes de oferecer respostas e soluções para os dilemas contratuais emergentes. Neste ínterim, a Teoria da Imprevisão surge como um princípio jurídico relevante, proporcionando um arcabouço para a renegociação ou resolução de contratos em circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis, que alteram drasticamente a equidade e a viabilidade da execução contratual.

Este artigo se propõe a realizar um exame aprofundado sobre a Teoria da Imprevisão, delineando seu histórico, fundamentos e a aplicabilidade no contexto jurídico atual. Serão discutidas as nuances dessa teoria, sua inserção na legislação e a interpretação doutrinária pertinente, com o intuito de elucidar a possibilidade de revisão ou rescisão contratual em face dos desafios impostos pela pandemia da COVID-19. Ademais, este estudo visa investigar os impactos concretos do coronavírus sobre os contratos e avaliar a aplicação prática da Teoria da Imprevisão nesse cenário excepcional, fornecendo insights valiosos para a compreensão e gestão das questões contratuais emergentes nesta era de incertezas.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

 2.1. HISTÓRICO E CONCEITOS.

A segurança jurídica confere estabilidade econômica, política e social, consistindo também em elemento essencial para as relações contratuais, dando harmonia e confiança no cumprimento do quanto acordado pelas partes. Neste aspecto, o pacta sunt servanda (do latim “os pactos são para serem observados”), trata-se deprincípio basilar que confere a partir dele a obrigatoriedade de cumprimento do quanto pactuado contratualmente, a força obrigatória que os pactos assumidos tem (LOPES, 2017).

Assim, a força obrigatória dos contratos trata-se de princípio do direito brasileiro, existente também em diversos outros países, acolhido do direito romano. Ela impede qualquer alteração contratual que não seja fruto da vontade das partes, não podendo qualquer evento externo servir de justificativa para modificação contratual, mesmo que tivesse como consequência o desequilíbrio entre as partes (CASTRO, 2020).

Tal entendimento foi sendo transformado, já que com as duas grandes guerras mundiais surgiu um contexto crise econômica, escassez de matérias primas e de mercadorias, impedimento de livre circulação de mercadorias e pessoas, e uma série de outros fatores, tornando muito difícil o cumprimento de contratos nesta época (CASTRO, 2020).

Castro (2020) afirma que diversas leis excepcionais e transitórias na época surgiram na França e Itália para dirimir a situação, relativizando o princípio da força obrigatória, por vezes suspendendo, permitindo a resolução do contrato, bem como concedendo moratória.

A doutrina estrangeira recorreu à jurisprudência dos tribunais eclesiásticos e às lições dos pós-glosadores e identificou a existência de uma cláusula implícita: a cláusula rebus sic stantibus.
Por ela, nos contratos que dependem de um fato futuro, que não nascem e se encerram imediatamente, o vínculo se entende mantido desde que permaneça o estado de fato vigente à época da estipulação, de tal sorte que, modificado o ambiente objetivo, por circunstâncias supervenientes e imprevistas, a força obrigatória não será preservada. Essa cláusula faz parte da vida, desempenha papel social, econômico e jurídico, e é coadjuvante da paz social.
Com base nela, os italianos denominaram de teoria da superveniência, enquanto os franceses, de teoria da imprevisão, esta última acolhida pelos doutrinadores em todo mundo. (CASTRO, 2020)

Logo, a Teoria da Imprevisão estabelece que em caso de evento futuro, não previsível pelas pessoas no momento da declaração de vontade, mas que torna impossível seu cumprimento, a prestação será inexigível (CASTRO, 2020).

Quando a diferença atinge um valor importante, quando a falta de equivalência aparece evidente aos mais ignorantes do curso dos preços, quando a ruptura do equilíbrio é a consequência duma guerra ou duma calamidade pública, a revisão dos contratos é mais imperiosa pedida. Enquanto este pedido não encontrar melhor justificação do que a diferença dos cursos dos preços não poderá ser atendido. Para evitar catástrofes financeiras, possíveis falências, o legislador, por leis de circunstância, concede prazos de pagamentos, autoriza prorrogações ou revisões de contratos. São medidas de oportunidade muitas vezes uteis, algumas vezes eficazes. Há então expropriação do direito do credor no interesse da paz pública, mas não aplicação regular duma regra jurídica (RIPERT, 2009).

Nesta senda, cabe trazer a cláusula rebus sic stantibus (do latim “estando assim as coisas”), que traduz a teoria da imprevisão, pela qual busca a manutenção do contrato enquanto as coisas estejam mantidas nas condições de quando da elaboração do contrato. Trata-se de uma exceção a obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda), pois havendo excessiva onerosidade a uma das partes, ocasionando um desequilíbrio contratual, o contrato pode ser revisto ou alterado, com intuito de manter-se o equilíbrio (LOPES, 2017)

Ripert (2009) ensina que o sentido da clausula rebus sic stantibus decorre de um evento extraordinário, fora da previsão humana, que justifique a revisão contratual. Este abuso inicia no momento em que o desequilíbrio contratual se dá de tal forma que o contratante não podia prever que ia tirar do contrato tal vantagem. Como requisito, o acontecimento deve tornar para o devedor o cumprimento do contrato muito difícil e oneroso.

1º O caráter imprevisível do acontecimento não depende da própria natureza do acontecimento, mas do que era impossível prever que sobreviesse, modificando a situação. Assim a guerra só poderá ser tomada em consideração se provocar uma modificação da situação econômica. A lei de 21 de janeiro de 1918 não foi aplicada senão aos contratos feitos antes da guerra; a Lei de 6 de julho de 1925 aos arrendamentos começados e concluídos antes de 24 de outubro de 1919; a jurisprudência do Conselho de Estado revela que o carvão atingiu, depois da guerra, um preço que não podia ser previsto.

2º A execução difícil ou onerosa do contrato resultará, a maior parte das vezes, da modificação dos preços. O devedor arruinar-se-á para obter as mercadorias ou as matérias a entregar; o empreiteiro não poderá executar o trabalho pelo preço combinado senão mediante um sacrifício considerável da sua fortuna pessoal; o concessionário do serviço público será ameaçado de falência; o preço do aluguel não está em relação ao valor locativo do imóvel (RIPERT, 2009).

A partir de Arnoldo Medeiros da Fonseca, em sua obra “Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão” de 1932, estruturou-se a força maior e o caso fortuito como excludentes de responsabilidade no direito brasileiro (CASTRO, 2020). Cabe trazer alguns dispositivos legais relevantes que se referem aos institutos aqui abordados. Vejamos:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

(…)

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

(…)

Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso. (BRASIL, 2002)

Neste aspecto, o artigo 393 consiste numa excludente de responsabilidade por prejuízos sofridos pelo credor, por fato decorrente de força maior ou caso fortuito, consistindo na materialização da Teoria da Imprevisão na legislação.

Assim, Diniz (2010) leciona que a inexecução da obrigação por fato inimputável ao devedor está consagrada em nosso direito, principalmente através do princípio da exoneração do devedor pela impossibilidade de cumprir a obrigação sem culpa sua. O credor não terá direito a indenização pelos prejuízos decorrentes de força maior (act of god) ou de caso fortuito.

Tal não significa, no entanto, que eventual impossibilidade de prestação será sempre causa de extinção da obrigação, vez que, quando não se estiver diante de termo essencial, de impossibilidade permanente de prestação ou de sua inutilidade para o credor em momento futuro, a solução adequada poderá ser a prorrogação de prazo para pagamento, com manutenção dos deveres de execução. (MONTEIRO FILHO, ROSENVALD, DENSA, 2020)

Ademais, faz-se de fundamental importância trazer acerca da onerosidade excessiva prevista nos artigos 478, do Código Civil, que estabelecem que nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Acrescenta-se ainda o art. 479, que define que a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Por fim, o art. 480 prevê que se no contrato, as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Nossa legislação se mostra mais favorável a uma renegociação contratual, diante de um caso de desequilíbrio, se adaptando as condições existentes, do que a uma ruptura contratual (LOPES,2017).

Segundo Agostinho Alvim, o “inadimplemento, por parte do devedor, pode ser absoluto, ou, traduzir-se em simples mora: inadimplemento absoluto e inadimplemento-mora, subdividindo-se o primeiro deles em inadimplemento absoluto total ou parcial.” O inadimplemento absoluto consubstancia-se a na impossibilidade de cumprimento da obrigação, de forma total ou parcial. Será parcial ser a obrigação compreende várias prestações, e, uma ou algumas não podem ser satisfeitas, subsistindo a obrigação quanto às demais. Segundo o mesmo autor, haverá “mora no caso em que a obrigação não tenha sido cumprida no lugar, no tempo, ou na forma convencionados, subsistindo, em todo o caso, a possibilidade de cumprimento.” (MONTEIRO FILHO, ROSENVALD, DENSA, 2020).

Embora exista uma corrente doutrinária que estabeleça distinções entre caso fortuito e força maior, o texto do Código Civil brasileiro não estabelece uma separação clara entre esses conceitos. Segundo essa vertente, o caso fortuito é identificado como um evento que não poderia ser previsto nem evitado, enquanto a força maior seria um evento que, apesar de previsível, não poderia ser evitado. Já Flávio Tartuce define o caso fortuito como totalmente imprevisível e a força maior como previsível, porém inevitável. No entanto, na prática jurídica e nas decisões dos tribunais, observa-se uma tendência à unificação dessas noções, sem uma distinção rigorosa entre elas, seguindo a abordagem mais genérica adotada pelo legislador.

Caso fortuito e força maior podem ser tomados como sinônimos, já que a ideia das expressões é de complementação. Nesse sentido está a redação do parágrafo único do art. 393. Em sentido diversos, há importância na distinção entre fortuito interno e externo, devido a diversidade de consequências. Diferentemente do fortuito interno, o fortuito externo exclui a responsabilidade. No fortuito interno o fato danoso não resultou da culpa do agente, mas de uma situação que se aliga diretamente aos riscos da atividade profissional exercitada pelo causador do dano. O risco vem de “dentro para fora”, sendo mais do que um simples cenário ou ocasião para o evento, traduzido em um evento evitável por parte de quem assumiu a atividade. A expressão força maior só poderá ser aplicada ao fortuito externo para fins de exoneração de responsabilidade do agente, como se verifica da hipótese aludida no art. 734, CC/02. Neste ponto, importante observar o Enunciado 442, do Conselho de Justiça Federal: ”O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida (MONTEIRO FILHO, ROSENVALD, DENSA, 2020)

De acordo com Bdine Jr. (2010) a característica mais importante dessas excludentes de responsabilidade é a inevitabilidade, a impossibilidade de serem evitadas pelas forças humanas. Para caracterizar caso fortuito ou força maior é necessário que o fato é necessário e não determinado por culpa do devedor, sendo superveniente e inevitável, irresistível, completamente fora do alcance do poder humano.

Baptista (1983), antes da entrada em vigor do nosso Código Civil de 2002, comparando com outros sistemas legais, como o francês e o inglês, já trazia que são essenciais para caracterizar  a força maior, a imprevisibilidade, inevitabilidade, e a exterioridade em relação as partes contratuais, donde resulte a impossibilidade de ser cumprida a obrigação.

O doutor Baptista (1983) afirma ainda que a maior parte dos redatores de contratos, especialmente os oriundos de países de common law, costumam caracterizar as circunstâncias constitutivas de força maior. Assim, para o autor, pode-se agrupar eventos tidos como de força maior. Vejamos:

Cataclisma: terremotos, tufões, tempestades, incêndios, aluviões, inundações, seca, raios, congelamento de estradas e linhas férreas, epidemias, onde os ingleses usam a expressão acts of god (…) (BAPTISTA, 1983)

Rosenvald (2020) leciona que contexto dos contratos internacionais, a força maior será considerada um “triggering event”, um gatilho atrelado a uma barreira tangível ou intangível que, uma vez violada, causa a ocorrência de outro evento, como por exemplo a resolução ou renegociação contratual.

No âmbito jurídico brasileiro, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o REsp 945.166 em 2012, consolidou o entendimento de que flutuações no valor de produtos agrícolas ou insumos, bem como o surgimento de pragas nas plantações – especificamente a ferrugem asiática no caso analisado –, não constituem bases suficientes para invocar a teoria da imprevisão visando discutir a onerosidade excessiva em contratos agrícolas.

Neste contexto específico, o Tribunal de Justiça de Goiás havia acolhido o pleito de um agricultor que buscava resolver um contrato de compra e venda futura de soja com uma empresa, argumentando que alterações climáticas e pragas provocaram aumento nos preços da soja e dos insumos agrícolas. Contudo, o Ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso, sublinhou que a alteração contratual por onerosidade excessiva requer a ocorrência de um evento extraordinário e imprevisível, que transcenda as variações ordinárias inerentes à atividade.

O Ministro Salomão enfatizou que variações no preço da soja são antecipáveis, considerando a natureza do produto, sujeito a dinâmicas de mercado e comercialização em bolsas de valores, assim como a presença da ferrugem asiática em culturas brasileiras desde 2001, uma praga conhecida e gerenciável, não configura uma surpresa para o setor.

Em uma análise distinta, ao revisar o REsp 1.998.206, a Quarta Turma decidiu que a pandemia da Covid-19, por si só, não justifica a revisão proporcional das mensalidades escolares sob a ótica das teorias da imprevisão ou da onerosidade excessiva. O Ministro Salomão ressaltou que, apesar da continuidade dos serviços educacionais, ajustados às condições impostas pela situação sanitária, não ocorreu um desequilíbrio contratual que justificasse tal revisão.

Por outro lado, no REsp 1.984.277, a mesma Turma reconheceu a viabilidade de revisão de contratos de locação não residencial devido ao impacto da pandemia, evidenciando uma necessidade de reajuste para manter o equilíbrio econômico e financeiro das partes envolvidas.

No julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.321.614, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) abordou uma questão concernente à aplicabilidade da teoria da imprevisão em um contexto de maxidesvalorização cambial. O caso envolvia um médico que adquiriu um equipamento de ultrassom importado, contratado pelo valor de 82 mil dólares. Diante de uma desvalorização significativa do real, o profissional solicitou a revisão das cláusulas contratuais baseando-se na teoria da imprevisão, objetivando ajustar o montante devido em razão da variação cambial adversa.

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do caso, enfatizou que a intervenção judicial em contratos, sob a ótica da teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, demanda a comprovação de mudanças supervenientes, imprevisíveis e extraordinárias nas circunstâncias existentes no momento da celebração do contrato, que afetem substancialmente o valor da prestação.

No caso em análise, a corte concluiu que a relação contratual era paritária e não sujeita às normas de proteção do direito do consumidor, destacando-se que o risco de oscilação cambial é um elemento inerente a contratos firmados em moeda estrangeira. O histórico de instabilidade econômica do país e a possibilidade de variações na taxa de câmbio foram considerados aspectos previsíveis, não justificando, portanto, a revisão contratual com base na teoria da imprevisão.

Assim, o STJ decidiu que a maxidesvalorização do real ocorrida em janeiro de 1999 não autorizava a aplicação da teoria da imprevisão para a revisão da cláusula de indexação ao dólar, reiterando a importância da análise de previsibilidade e da assunção de riscos em acordos contratuais.

Ademais, a Primeira Turma, ao avaliar o REsp 1.797.714, reiterou que ajustes salariais decorrentes de convenções coletivas não constituem eventos imprevisíveis, não servindo, portanto, como fundamento para a repactuação de contratos administrativos, reforçando a previsibilidade desses ajustes no contexto de contratações públicas.

2.2. CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS

O contrato constitui-se como negócio jurídico, um ato bilateral ou plurilateral, decorrente da declaração de vontade das partes, com intuito de criar, alterar ou extinguir direitos e deveres entre os sujeitos da relação. Nesta senda, o contrato deve estar em conformidade com ordenamento jurídico, seguindo princípios como da função social e econômica, boa-fé e bons costumes, além de objeto de conteúdo licito (TARTUCE, 2020).

Os contratos são instrumentos por excelência de circulação de riquezas, sendo que as trocas demandam utilidade e justiça, sendo censurado os abusos da liberdade contratual (BDINE JR, 2010). Monteiro Filho, Rosenvald e Densa (2020) trazem que o contrato consiste em fonte obrigacional pela qual as partes convencionam riscos, sendo mais que o instrumento de circulação de bens e serviços, configurando a própria realidade econômica.

Analisar o contrato enquanto prática implica entendê-lo como um elemento indissoluvelmente ligado à sociedade na qual ele existe. As razões para tal afirmação são bastante triviais à medida que não se concebe uma relação contratual sem instituições estabilizadoras, regras sociais, valores, economia e linguagem. Em outras palavras, não existe contrato fora do contexto de uma dada matriz social que lhe dá significado e lhe define as regras. Conforme salientado anteriormente, não existe contrato fora de uma ordem de mercado e esta sem uma sociedade que lhe dê suporte (MONTEIRO FILHO, ROSENVALD, DENSA, 2020).

A Lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, a chamada de Lei da Liberdade Econômica, acrescentou o parágrafo único ao art. 421 do Código Civil, estabelecendo o princípio da intervenção mínima nos contratos e a excepcionalidade da revisão contratual. A Pandemia causada pelo Coronavírus se enquadraria dentro desse espectro da excepcionalidade.  

Março de 2020. Espraia-se, em escala global, cenário distópico a alcançar indistintamente países de diferentes níveis de desenvolvimento. Fala-se logo de quadro comparável à chamada influenza espanhola (de 1918, que resultou na morte de 100 milhões de pessoas) ou à peste negra (do século XIV, que dizimou entre 75 e 200 milhões de pessoas). Os impactos iniciais da pandemia da Covid-19, resultante do novo coronavírus que se alastrou a partir da cidade de Wuhan na China desde dezembro do ano passado, alcançam em primeiro plano a saúde da população e, na esteira desta, as relações pessoais e econômicas que se travam no meio social (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020).

A COVID-19 afetou e afetará diversas relações contratuais nas mais diversas áreas, já que em virtude da rápida capacidade de disseminação do vírus e risco de superlotação do sistema de saúde público e privado no Brasil, vemos o fechamento do comercio, eventos públicos, privados e esportivos, de escritórios, dentre outros.

Neste sentido, Leite (2020) alega que a Teoria da Imprevisão terá cabimento em consonância com substrato fático que o coronavírus nos traz, desde que exista desequilíbrio contratual, onerosidade excessiva para uma das partes e ausência de mora.

Nesse mister, faz-se alusão à enumeração aberta de fatores que precisam necessariamente ser tomados em consideração ao deslinde do caso em sua especificidade: (i) o modo e o tempo em que os efeitos do ciclo epidêmico alcançam as prestações pactuadas; (ii) os possíveis meios alternativos de execução da prestação; (iii) o mercado em que se insere a atividade em análise; (iv) o aumento do custo de insumos necessários à produção convencionada; (v) a eventual presença de insumos que permitam substituir os necessários ao cumprimento dos deveres contratualmente assumidos; (vi) os termos da estipulação contratual e sua natureza; (vii) presença de cláusulas limitativas ou excludentes de responsabilidade; (viii) cláusula de hardship; (ix) clásulas de garantia; (x) cláusulas de força maior; (xi) cláusulas de mediação, conciliação e arbitragem; (xii) a equação econômica do negócio, à luz do equilíbrio funcional do contrato; (xiii) a eventual situação de mora de alguma ou de ambas as partes; dentre outras tantas circunstâncias indissociáveis de apreciação (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020).

A Pandemia causada pelo novo coronavírus, por si só, não pode ser tida como motivo amplo de descumprimento de obrigações contratuais. Deve-se comprovar a incidência direta dos efeitos da COVID-19 na relação contratual, bem como ponderar todo contexto específico e geral atrelado aquele contrato.

A título prático de todos os institutos abordados no presente artigo, temos o caso entre o Sindicato dos Lojistas do Comércio do Estado da Bahia e o Condomínio Naciguat (Shopping da Bahia). O Sindicato, em nome de todos substituídos processuais representados, pleiteou a suspensão da exigibilidade de todas as obrigações pecuniárias decorrentes do contrato de locação firmado, incluindo pagamento do aluguel e fundo de promoção e propaganda, enquanto os efeitos da suspensão das atividades perdurarem.

O juiz de direito Érico Rodrigues Vieira, em sede de tutela de urgência, entendeu o seguinte:

(…) O advento da pandemia, todavia, caracteriza, de forma concreta e inequívoca, a imprevisibilidade que legitima a revisão contratual na forma do art. 317 do CC de 2002, como ainda a onerosidade excessiva para os lojistas (art. 478 do CC de 2002), impondo-se a pretendida revisão para tentar se buscar a manutenção dos contratos, os quais, aliás, ainda que revistos nos termos da presente, dada a gravidade do momento e, mormente, seus nefastos efeitos econômicos, não necessariamente lograram manter-se. In casu, a manutenção do atual cenário, qual seja, total ausência de receita para os lojistas substituídos, face o fechamento do shopping demandado por ordem do Poder Público local em razão da imperiosa necessidade de contenção da pandemia, e continuidade da exigibilidade dos encargos decorrentes dos contratos daqueles firmados com o shopping, sobretudo, aluguéis e fundo de promoção de propaganda, configura significativo e inequívoco prejuízo aos substituídos pela parte autora, a satisfazer o requisito emergencial do art. 300 do CPC, ao que se deve aditar a também inconteste evidência da verossimilhança do direito autoral, à luz, reitere-se, dos arts, 317 e 478 do CC, tudo a legitimar a concessão da tutela de urgência reclamada. (…)” BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Procedimento Comum Cível nº 8034799-17.2020.8.05.0001. Demandante: Sindicato Dos Lojistas Do Comercio Do Estado Da Bahia. Demandada: Condominio Naciguat. Relator:Juiz Érico Rodrigues Vieira. Salvador, 14 de abril de 2020.

No que se referem aos impactos da pandemia na relação contratual entre lojistas e shopping centers, existem duas correntes acerca da possibilidade de redução do valor do aluguel mínimo a ser pago, já que neste período de inatividade, em geral, não há que se falar em aluguel percentual, calculado à base de uma porcentagem sobre as vendas apuradas (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020).

A primeira corrente entende pela aplicação da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva, aplicando-se revisão contratual (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020). Já a segunda corrente defende aplicação do art. 567 do Código Civil, pela qual, se durante a locação, houver deterioração da coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolução contratual, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020).

Com relação à incidência da teoria da excessiva onerosidade, cabe destacar recente decisão da 25ª Vara Cível de Brasília, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, no processo nº 0709038-25.2020.8.07.0001, que deferiu pedido de antecipação de tutela para autorizar lojista a suspender o pagamento do aluguel mínimo e dos valores referentes ao fundo de promoção e propaganda, no contexto da pandemia do novo coronavírus (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020).

Neste sentido, o coronavírus pode conduzir, em decorrência da situação de força maior, a extinção das obrigações contratuais ou a suspensão dos efeitos de mora, no caso de temporária, já que as circunstâncias geram uma situação de impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual pelo devedor. Cada caso deve ser analisado de acordo com suas particularidades, levando em conta todos os elementos próprios que o compõem, não havendo uma resposta padrão para resolução de casos como esse.

Não conduz a um único resultado o processo interpretativo dos efeitos provocados pelo novo coronavírus às relações contratuais. Com efeito, a depender da composição de interesse atingidos, o concreto programa contratual em analise, diversa será a qualificação do fato jurídico pandemia. Assim, nos contratos de execução continuada ou diferida, a pandemia, embora por vezes não impossibilite a prestação, pode torna-la extremamente onerosa ao devedor, de modo a justificar a revisão ou resolução contratuais, ou mesmo a repactuação espontânea da avença pelas partes, em nome do princípio da conservação dos negócios; em outros pactos, suas consequências poderão determinar tão somente a suspensão da execução do objeto da contratação, postergando os deveres de prestação para ulterior momento; e ainda em outros tantos casos, o fato jurídico pandemia provocará a impossibilidade superveniente de execução da prestação, a configurar caso fortuito ou força maior, capazes de, por meio do rompimento do nexo de causalidade, afastar os efeitos do inadimplemento absoluto ou da mora do devedor na hipótese de incumprimento da obrigação (MONTEIRO FILHO; ROSENVALD; DENSA, 2020).

Rosenvald (2020) alerta que deve haver análise caso a caso acerca da incidência de força maior em casos de descumprimento obrigacional. Por exemplo, as atividades em que houve restrição estatal, impedindo o desempenho das atividades, tem probabilidades melhores de justificar o descumprimento contratual.

3.                 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, a investigação empreendida neste artigo revela a complexidade e a relevância da Teoria da Imprevisão no cenário tumultuado instaurado pela pandemia de COVID-19. A análise detalhada demonstra que a legislação e a doutrina jurídica oferecem mecanismos para a adaptação e a revisão contratual em face de eventos extraordinários e imprevisíveis, tais como os provocados pela crise sanitária global.

Fica evidente que o direito contratual, embora tradicionalmente pautado pela força obrigatória dos pactos (pacta sunt servanda), deve ser flexível o suficiente para acomodar situações de força maior ou caso fortuito, mantendo o equilíbrio e a equidade nas relações contratuais. A pandemia, como um evento de magnitude inédita, testou os limites dessa flexibilidade, exigindo dos operadores do direito uma aplicação prudente e contextualizada dos princípios jurídicos.

Os casos analisados ilustram a diversidade de situações e a necessidade de uma abordagem caso a caso, onde a aplicação da Teoria da Imprevisão e das normas relativas à onerosidade excessiva deve levar em conta as particularidades de cada relação contratual afetada pela pandemia. Enquanto algumas situações demandam revisão ou mesmo resolução contratual, outras podem ser resolvidas por meio de negociação e adaptação mútua das partes envolvidas.

Além disso, a distinção entre caso fortuito interno e externo ganha especial relevância, influenciando diretamente a responsabilização e as possibilidades de revisão contratual. A jurisprudência recente fornece um panorama de como os tribunais estão lidando com essas questões, evidenciando uma tendência à moderação e ao equilíbrio, buscando preservar tanto a segurança jurídica quanto a justiça contratual em tempos de incerteza.

Portanto, a pandemia de COVID-19 não apenas desafiou a sociedade e a economia global, mas também proporcionou um terreno fértil para a reflexão e o desenvolvimento do direito contratual, sublinhando a importância de princípios como a boa-fé, a função social do contrato, e a necessidade de adaptação das normas jurídicas às circunstâncias excepcionais. O legado desse período turbulento, portanto, inclui uma rica jurisprudência e uma doutrina mais refinada sobre a interação entre contrato, imprevisão e crise, contribuindo para a evolução contínua do direito contratual na busca pelo equilíbrio entre estabilidade e justiça.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Procedimento Comum Cível nº 8034799-17.2020.8.05.0001. Demandante: Sindicato Dos Lojistas Do Comercio Do Estado Da Bahia. Demandada: Condominio Naciguat. Relator:Juiz Érico Rodrigues Vieira. Salvador, 14 de abril de 2020.

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Victor Habib Lantyer
Victor Habib Lantyer
lantyer.com.br

Advogado, professor, Autor e Pesquisador, especializado em Direito Digital, IA, Propriedade Intelectual e LGPD. Autor do livro LGPD e Seus Reflexos no Direito do Trabalho e Direito Digital e Inovação mais de 7 obras jurídicas. Membro da Comissão Permanente de Tecnologia e Inovação da OAB/BA: Coordenador da coordenação de Inteligência Artificial e membro das coordenações de LGPD e Metaverso. Membro da Associação Nacional de Advogados de Direito Digital. Criador e idealizador do site Lantyer Educacional (www.lantyer.com.br), descomplicando assuntos jurídicos de forma simples, fácil e democrática.

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O que é Direito Digital? O que são os Metaversos?