Introdução
A inteligência artificial (IA) emergiu como o principal campo de disputa entre as gigantes de tecnologia nos últimos anos. Empresas como Microsoft e Google investiram pesado em startups de IA generativa, enquanto a Apple – outrora pioneira com a assistente Siri – passou a ser vista como retardatária nessa corrida.
Em paralelo, órgãos reguladores nos EUA, como a Comissão Federal de Comércio (FTC) e o Departamento de Justiça (DOJ), intensificaram a vigilância sobre acordos e estruturas de mercado em IA, temendo que parcerias estratégicas e investimentos cruzados possam concentrar poder e sufocar a competição
Este artigo analisa em profundidade o atraso da Apple na corrida da IA, sua complexa relação com a OpenAI e a Microsoft, e o papel central dos reguladores nessa conjuntura tecnológica e jurídica.
Apple e seu Atraso na Corrida da IA
A Apple introduziu a Siri em 2011, tornando-se a primeira Big Tech a popularizar uma assistente de voz impulsionada por IA. Entretanto, a última década viu a empresa adotar uma postura mais cautelosa e lenta no desenvolvimento de IA generativa, focando em melhorias incrementais de hardware (como o Neural Engine nos chips móveis) e em recursos de privacidade on-device. Em contraste, a OpenAI lançou em 2022 o ChatGPT, catalisando uma revolução de IA generativa que Apple não liderou. Reportagens indicam que a própria Apple reconhece estar alguns anos atrás: segundo Mark Gurman (Bloomberg), alguns dentro da Apple acreditam que sua tecnologia de IA generativa está “mais de dois anos atrás das líderes da indústria”
De fato, testes internos teriam mostrado o ChatGPT 25% mais preciso que a Siri e capaz de responder 30% mais perguntas, evidenciando a defasagem das soluções da Apple.
A empresa de Cupertino anunciou tardiamente, em 2024, um esforço chamado Apple Intelligence – sua nova estratégia em IA generativa – apenas durante a conferência WWDC daquele ano. Enquanto isso, rivais como Microsoft e NVIDIA já colhiam os frutos dessa tecnologia, tornando-se temporariamente as empresas de maior valor de mercado graças às expectativas em torno da IA. A Apple vem desenvolvendo um modelo de linguagem próprio, de codinome Ajax, e realizou experimentos com um chatbot interno apelidado de “Apple GPT”. Contudo, mesmo executivos admitem que essas iniciativas estão aquém do estado da arte. O CEO Tim Cook confirmou publicamente que a Apple tem dedicado “um esforço tremendo” ao desenvolvimento de recursos de IA e planeja entregá-los aos consumidores “até o final deste ano” (2024). Tal declaração demonstra a urgência percebida pela empresa em recuperar terreno.
Do ponto de vista técnico, analistas apontam que a Apple focou historicamente em IA embarcada e aplicação prática (por exemplo, reconhecimento facial no Face ID, processamento de fotos e comandos offline da Siri), mas faltou uma investida robusta em IA de larga escala baseada em nuvem. Essa estratégia cautelosa, possivelmente guiada por preocupações de privacidade e curadoria estrita da experiência do usuário, agora deixa a Apple em posição vulnerável frente à corrida de chatbots avançados e assistentes baseados em grandes modelos de linguagem (LLMs). O consenso é que a Apple “acordou tarde” para a nova onda de IA generativa, e precisará alavancar sua vasta base instalada de 2 bilhões de dispositivos para não ficar irreversivelmente para trás
Afinal, a empresa possui recursos financeiros e talento de sobra para reverter a situação, mas a janela para estabelecer liderança em IA está se fechando rapidamente.
Juridicamente, o atraso da Apple também tem implicações. A empresa não enfrenta hoje escrutínio regulatório direto em IA do mesmo modo que concorrentes mais agressivos, mas isso é um reflexo de sua menor participação nesse mercado. Há, porém, riscos legais se a Apple tentar recuperar o tempo perdido de formas anticoncorrenciais. Por exemplo, se decidisse usar seu controle sobre o ecossistema iOS para privilegiar um serviço próprio de IA (uma vez que o tenha), poderia atrair atenções de órgãos antitruste – assim como ocorreu com práticas de preinstalar ou definir padrões de serviços em seus dispositivos. O histórico recente do caso DOJ vs. Google, no qual a Apple é coadjuvante por receber da Google cerca de US$ 18 bilhões ao ano para manter o buscador como padrão no iPhone, mostra que parcerias da Apple em áreas críticas já levantam alegações de lock-in e exclusividade prejudicial. Portanto, a forma como a Apple se moverá na corrida da IA terá de equilibrar agressividade tecnológica com cuidado regulatório.

A Parceria Microsoft–OpenAI e seu Impacto Competitivo
Se a Apple hesitou em IA, a Microsoft fez exatamente o oposto. Em 2019, a Microsoft investiu US$ 1 bilhão na OpenAI e firmou um acordo de longo prazo para fornecer infraestrutura em nuvem (Azure) à startup, marcando o início de uma parceria profunda. Esse aporte inicial evoluiu para uma inversão total de cerca de US$ 13 bilhões na OpenAI, garantindo à Microsoft aproximadamente 49% de participação econômica na empresa. Em troca, a OpenAI passou a desenvolver seus modelos avançados usando exclusivamente os serviços de cloud Azure, e a Microsoft assegurou direitos de integração preferencial dessas tecnologias em seus produtos. O resultado foi um rápido salto competitivo: em menos de um ano após o lançamento do ChatGPT, a Microsoft incorporou a IA generativa da OpenAI em uma série de ofertas – do mecanismo de busca Bing ao assistente Copilot no Windows e na suíte Office. Essa estratégia deu à Microsoft uma posição única de desafiante ao domínio do Google em buscas e de pioneira na infusão de IA produtiva em ferramentas de produtividade.
Do ponto de vista concorrencial, a parceria Microsoft–OpenAI apresenta características de concentração vertical e expansão de monopólio de forma não convencional. A Microsoft não “comprou” a OpenAI no sentido tradicional, mas seu investimento maciço e acordos de exclusividade lhe conferiram muitos dos benefícios de uma aquisição, sem tecnicamente violar regras de fusão. Críticos apontam que a Microsoft pode estar estendendo seu poder no mercado de cloud computing (onde Azure compete com AWS e Google Cloud) para o nascente mercado de plataformas de IA. Um relatório da Reuters destacou preocupações de que a gigante de Redmond poderia ampliar sua dominância em nuvem para a nova fronteira da IA por meio dessa aliança. De fato, ao assegurar que modelos revolucionários como GPT-4 rodem prioritariamente em seus data centers, a Microsoft cria um efeito de lock-in tanto para a OpenAI (que depende da infraestrutura Azure) quanto para clientes corporativos que optam pelo ecossistema Microsoft/OpenAI.
Reguladores antitruste já demonstram interesse direto nessa relação. Em janeiro de 2024, a FTC emitiu ordens formais de inquérito, sob autoridade do Artigo 6(b) do FTC Act, exigindo que Microsoft e OpenAI (dentre outros) fornecessem informações detalhadas sobre seus investimentos e acordos envolvendo IA. Segundo a presidente da FTC, Lina Khan, “à medida que empresas disputam para desenvolver e monetizar a IA, devemos resguardar contra táticas que fechem essa janela de oportunidade”, investigando se parcerias e aportes feitos por empresas dominantes podem distorcer a inovação e prejudicar a competição leal. A aliança Microsoft–OpenAI é claramente um dos focos desse escrutínio, por ser emblemática da aproximação entre um provedor dominante de infraestrutura e um desenvolvedor líder de IA.
Além do FTC, o próprio Departamento de Justiça acompanhou de perto esses movimentos. Em junho de 2024, chegou-se a noticiar uma coordenação inédita entre o DOJ e a FTC para dividir investigações: o DOJ examinaria possíveis violações antitruste da NVIDIA (dominante em chips de IA), enquanto a FTC avaliaria a conduta da OpenAI e da Microsoft. Essa divisão de tarefas, reportada pela imprensa na época, reflete a preocupação ampla das autoridades dos EUA de não deixar nenhum flanco sem vigilância. Jonathan Kanter, chefe da divisão antitruste do DOJ, afirmou em conferência que há “estruturas e tendências na IA que devem nos fazer pausar”, destacando que a tecnologia depende de quantidades massivas de dados e poder computacional, o que pode dar às empresas já dominantes uma vantagem substancial. Essa declaração alude justamente à situação de Microsoft e OpenAI: uma empresa já estabelecida fornecendo recursos essenciais (dados, nuvem, capital) para um parceiro de IA, possivelmente erguendo barreiras a concorrentes menores que não têm acesso a tais meios.
Por ora, a parceria Microsoft–OpenAI rendeu frutos notáveis em inovação – como o sucesso estrondoso do ChatGPT e sua integração em diversos produtos. Do lado de negócios, a Microsoft viu sua capitalização de mercado subir e ganhou a percepção de líder em IA, ao ponto de alternar com a Apple o posto de empresa mais valiosa do mundo durante 2023. Contudo, essa mesma influência multifacetada da Microsoft sobre a OpenAI acendeu alertas regulatórios nos EUA e Europa, preocupados com o poder excessivo em uma tecnologia tão estratégica. O dilema colocado é complexo: como incentivar parcerias que aceleram a inovação, sem permitir que elas resultem em um duopólio ou oligopólio da próxima grande plataforma tecnológica? A resposta a essa pergunta ainda está em construção pelos órgãos competentes, enquanto o mercado evolui rapidamente.

Apple, OpenAI e Microsoft: Uma Relação Complexa
Em meio à vantagem obtida pela Microsoft com a OpenAI, a Apple viu-se numa posição inusual de precisar cooperar com rivais para não ficar irrelevante em IA. Historicamente, a Apple prefere desenvolver internamente suas tecnologias-chave, ou adquirir startups promissoras de forma discreta. Mas diante da disparada da OpenAI e de outros líderes, a empresa adotou um pragmatismo notável: em 2024, a Apple forjou um acordo para integrar a tecnologia do ChatGPT (OpenAI) diretamente em seu sistema operacional do iPhone. Segundo reportagem de Mark Gurman, da Bloomberg, essa parceria “antes improvável” com Sam Altman (CEO da OpenAI) tornou-se necessária para a Apple recuperar terreno na IA generativa. O anúncio seria destaque na WWDC 2024, e embora os detalhes técnicos não tenham sido inteiramente públicos, entende-se que a OpenAI colaboraria para turbinar recursos de linguagem natural e geração de conteúdo nos dispositivos Apple.
Esse arranjo cria uma situação curiosa: a OpenAI, apoiada massivamente pela Microsoft, passou a também colaborar com a Apple, que é concorrente da Microsoft em várias frentes. Sob a ótica da OpenAI, faz sentido distribuir sua tecnologia ao máximo de usuários (incluindo os do ecossistema Apple) e diversificar parcerias. Para a Apple, contar com a OpenAI significou acesso imediato a uma IA de ponta sem precisar esperar anos de P&D interno. No entanto, a aliança triangular Apple–OpenAI–Microsoft vem acompanhada de sensibilidades. Reguladores e analistas temem que uma concentração excessiva de Big Tech em torno de poucas plataformas de IA gere uma espécie de cartelização da inovação: por exemplo, se OpenAI atende simultaneamente Microsoft e Apple, será que sobra espaço para alguma outra empresa competir ou propor alternativas? Não surpreende, portanto, que logo após surgirem notícias do pacto Apple–OpenAI, tanto Microsoft quanto Apple desistiram de ocupar assentos no conselho de administração da OpenAI, em parte para evitar a percepção de conluio ou controle excessivo.
De fato, em julho de 2024 foi revelado que a Microsoft, que tinha um lugar de observador no conselho da OpenAI, renunciou a essa posição, e que a Apple – que planejava indicar um representante – também abriu mão de participar do conselho da OpenAI devido ao escrutínio regulatório crescente. Reguladores nos EUA e Europa haviam expressado preocupação com a influência desproporcional que a Microsoft poderia exercer sobre a OpenAI. A presença simultânea da Apple no conselho da startup líder de IA geraria ainda mais alarmes, sugerindo que Big Tech poderia “fechar o clube” e ditar os rumos da IA em foro privado. Sob pressão, a OpenAI anunciou que não terá mais observadores em seu conselho após a saída da Microsoft, numa tentativa de manter a governança “em distância de segurança” das grandes corporações. Ainda assim, fontes ligadas à FTC indicaram que essa medida é insuficiente para dissipar as preocupações sobre a parceria Microsoft–OpenAI, deixando claro que a vigilância continuará.
A Apple, por sua vez, não apostou todas as fichas apenas na OpenAI. Relatos apontam que a empresa manteve negociações ativas também com a Google para uso do Gemini, o modelo generativo avançado da Google, possivelmente em funções de nuvem ou recursos de IA visual. Isso demonstra que a Apple busca alternativas e não deseja ficar à mercê de um único fornecedor de IA – sobretudo um fortemente alinhado à rival Microsoft. Timing é um fator crucial: a Apple planeja introduzir funcionalidades de IA generativa “mais tarde em 2024” em seus produtos, e a solução pode envolver uma mescla de modelos próprios e de terceiros. Assim, enquanto um componente on-device poderia ser atendido pelo modelo interno Ajax, recursos mais pesados de geração de texto ou imagem poderiam vir via parceria com OpenAI ou Google. Esse ecossistema híbrido reflete a complexidade geopolítica e competitiva da IA: até mesmo gigantes como Apple precisam negociar acesso a tecnologias de rivais para entregar valor aos seus usuários.
É instrutivo notar um paralelo dessa situação com o acordo de buscas entre Apple e Google. Por anos, a Apple aceitou bilhões da Google para manter o Google Search como buscador padrão no iOS – um acordo agora acusado pelo DOJ de ser uma prática anticompetitiva que reforçou o monopólio da Google nas buscas. Na IA, a Apple novamente considera parcerias estratégicas em vez de concorrer diretamente, seja com OpenAI ou Google, admitindo tacitamente que ficou para trás nessa tecnologia. Legalmente, isso suscita uma questão: parcerias de grande porte entre concorrentes podem, em certos contextos, configurar violações antitruste? Até o momento, acordos de licenciamento tecnológico não receberam o mesmo nível de desafio legal que fusões ou cartéis explícitos. Contudo, se Apple e Google, por exemplo, firmarem um pacto para dividir ou compartilhar competências de IA (como o Gemini no iPhone), reguladores podem avaliar se isso reduz o incentivo de cada uma competir de forma independente – uma preocupação semelhante à do caso de busca. Portanto, a Apple caminha numa linha tênue: colaborar com rivais pode acelerar sua entrada na IA, mas tais movimentos serão escrutinados para garantir que não representem combinação de poderes em detrimento do mercado.
Aquisições de Talento e a Incursão da Microsoft na Inflection AI
Além de parcerias societárias, outro aspecto marcante da corrida pela IA é a aquisição de talentos e equipes inteiras fora dos canais tradicionais de M&A. Um caso exemplar envolve a startup Inflection AI. Fundada em 2022 pelo empresário Mustafa Suleyman (cofundador da DeepMind) e pelo executivo Karén Simonyan, a Inflection AI rapidamente ganhou destaque no setor com ambições de desenvolver assistentes de IA conversacionais (chatbots avançados). A Microsoft, que já havia liderado um investimento de US$ 1,3 bilhão na Inflection AI em 2023, surpreendeu o mercado em março de 2024 ao contratar Suleyman, Simonyan e diversos membros-chave da equipe da Inflection AI para liderar uma nova divisão de IA de consumo na Microsoft. Suleyman assumiu como Vice-Presidente Executivo e CEO de “Microsoft AI” – um grupo criado sob medida dentro da companhia – reportando diretamente a Satya Nadella, enquanto Simonyan tornou-se cientista-chefe dessa divisão. Em essência, a Microsoft absorveu os cérebros por trás de uma startup promissora, sem adquirir formalmente a empresa inteira.
Esse movimento, descrito como “um dos acordos mais estranhos” por analistas, levanta importantes reflexões legais e de mercado. Por um lado, a Inflection AI continuou existindo como entidade separada, mas esvaziada de sua liderança e de parte significativa de seus engenheiros, justamente após receber um grande aporte do qual a Microsoft participara. Isso pode ser visto como uma “aquisição disfarçada”: ao invés de comprar a companhia – o que provavelmente acionaria revisões antitruste tradicionais – a Microsoft optou por contratar em massa seus principais funcionários. O órgão antitruste do Reino Unido (CMA) interpretou essa manobra como um evento de concentração suscetível a análise, chegando a abrir uma investigação para determinar se a transferência de pessoal configurava uma “situação de fusão relevante” sob a lei britânica. Em setembro de 2024, a CMA concluiu que, embora a contratação coletiva representasse de fato uma aquisição de certos ativos da Inflection (capital humano, essencialmente), ela não criaria, naquele caso, uma redução substancial da concorrência. Assim, o caso foi arquivado, mas o simples fato de ter sido investigado marca um precedente: reguladores estão atentos até mesmo a aquisições de talentos como forma de concentrar mercado.
Em seu relatório, a CMA justificou a atenção ao caso Inflection AI observando ter identificado “uma teia interconectada de mais de 90 parcerias e investimentos estratégicos envolvendo as mesmas grandes empresas: Google, Apple, Microsoft, Meta, Amazon e Nvidia”. Ou seja, o recrutamento dos funcionários da Inflection foi visto no contexto de um cenário maior em que as Big Tech estabelecem uma miríade de acordos entre si e com startups de IA. A Apple aparece mencionada nessa teia, embora de perfil mais discreto: a empresa não fez movimentos tão ousados publicamente quanto a Microsoft, mas realizou suas próprias aquisições de startups de IA nos últimos anos (como a Silk Labs em 2018, a Xnor.ai em 2020, entre outras) e contratou nomes de peso, como o ex-chefe de IA do Google, John Giannandrea, em 2018. Esses esforços da Apple visavam reforçar internamente seu time de IA, mas até agora não se traduziram em liderança de produto.
Voltando ao caso Microsoft–Inflection, a repercussão geopolítica foi notável. A Inflection AI contava com investidores de peso do Vale do Silício, e sua “defecção em massa” para a Microsoft (como descreveu um artigo da Bloomberg Businessweek) simbolizou para muitos a dificuldade das startups independentes competirem com os recursos das Big Tech. Ao mesmo tempo, a prontidão da CMA em tratar a contratação de pessoal como fusão mostra uma tendência regulatória: ampliar as ferramentas de controle para além das aquisições acionárias, alcançando também acordos de colaboração e transferências de ativos intangíveis. Nos EUA, a FTC e o DOJ tradicionalmente não consideravam “contratações” sob a ótica de fusões, mas dado o exemplo britânico e a crescente importância estratégica de talentos de IA, não é impossível imaginar escrutínio semelhante se casos extremos ocorrerem domesticamente. Em suma, a guerra por talentos em IA tornou-se parte central da dinâmica concorrencial, e empresas como Microsoft e Apple estão dispostas a pagar somas altíssimas ou ofertar posições de destaque para atrair os melhores – o que, por sua vez, atrai a atenção de reguladores preocupados em manter um campo de jogo equilibrado.
Do ponto de vista legal, surge aqui uma pergunta: até que ponto a absorção de equipes via contratação pode ser usada para contornar o controle de concentrações? A legislação antitruste tradicional foca em aquisições de participação societária ou de ativos negociáveis. Tal legislação pode não alcançar facilmente uma “aquisição” cujo objeto são contratos de trabalho rescindidos e re-firmados por outra empresa. No entanto, se restar comprovado que essas contratações fazem parte de um acordo maior de desmantelamento de um potencial concorrente (por exemplo, uma startup desistindo de competir em troca de investimento e relocação de sua equipe à investidora), reguladores poderiam invocar teorias de conduta anticoncorrencial coordenada ou de “acordo restritivo de competição”. Até aqui, a Microsoft defendeu-se dizendo que habilitou um dos startups de IA mais bem-sucedidas do mundo e impulsionou a inovação na indústria com suas parcerias. Cabe aos reguladores testar os limites dessas alegações e, se necessário, estabelecer novas diretrizes para que o recrutamento agressivo de talentos não seja usado para enfraquecer a concorrência.
O Domínio da Nvidia na Infraestrutura de IA
Nenhuma discussão sobre a corrida da IA estaria completa sem abordar o papel da Nvidia, descrita por muitos como “a viga mestra” da revolução da IA moderna. A Nvidia domina cerca de 80% do mercado de chips de processamento acelerado para IA– notadamente GPUs de alto desempenho como as séries A100 e H100, que se tornaram componentes críticos para treinar e executar grandes modelos de IA. Essa posição dominante fez da Nvidia uma das empresas mais valiosas do mundo em 2023, atingindo brevemente uma capitalização trilionária, e lhe conferiu margens de lucro brutas extraordinárias (entre 70% e 80%, muito acima do típico na indústria de semicondutores). Praticamente todas as grandes iniciativas de IA generativa dependem de hardware Nvidia: OpenAI treina seus modelos em GPUs Nvidia nos clusters do Azure; Meta e Google também utilizam massivamente GPUs Nvidia (ainda que o Google tenha suas TPU customizadas, elas atendem principalmente à própria Google); startups como Inflection AI e Anthropic orgulham-se de montar supercomputadores com dezenas de milhares de GPUs Nvidia. Assim, a Nvidia tornou-se um fornecedor quase insubstituível – um gargalo estratégico – para qualquer player que queira competir na vanguarda da IA.
A supremacia da Nvidia traz implicações competitivas e geopolíticas significativas. Em termos de concorrência, há preocupações clássicas de dependência de infraestrutura: se uma empresa controla um insumo essencial (no caso, hardware de IA) e também participa em mercados a jusante, existe o risco de discriminação ou foreclosure contra rivais. A Nvidia, até o momento, não atua diretamente no fornecimento de serviços de IA finalísticos (como plataformas de machine learning ou modelos proprietários de IA) – seu negócio é vender hardware e algumas ferramentas de software relacionadas. Contudo, a simples concentração vertical de tantas empresas diferentes dependendo de um único fornecedor levanta dilemas. Por exemplo, se houvesse escassez de GPUs, a Nvidia poderia teoricamente privilegiar parceiros estratégicos ou aqueles que pagam mais, afetando a capacidade de outros competidores treinarem seus modelos em pé de igualdade. Além disso, o altíssimo custo das GPUs de ponta (um único H100 pode custar dezenas de milhares de dólares) cria barreiras à entrada: novos entrantes ou pesquisadores independentes dificilmente conseguem arcar com a infraestrutura necessária, reforçando o poder de incumbentes que têm capital para comprar esses chips em volume.
Os reguladores antitruste já atuaram para impedir que a Nvidia expandisse ainda mais seu domínio. Em 2022, tanto a FTC quanto autoridades britânicas e europeias bloquearam a tentativa da Nvidia de adquirir a ARM Ltd., proprietária da arquitetura de chips Arm, utilizada pela maioria dos dispositivos móveis do mundo. A justificativa era que a fusão poderia suprimir a inovação e competição em diversos mercados de chips, inclusive potencialmente impactando o futuro dos chips de IA, ao colocar sob controle da Nvidia uma tecnologia-base usada por concorrentes. Embora esse caso não diga respeito diretamente a GPUs, ele sinaliza que os órgãos antitruste estão dispostos a intervir quando enxergam risco de uma empresa tornar-se guardiã incontestável de um ecossistema tecnológico. Com a IA, até agora não se fala em ações para “quebrar” o domínio da Nvidia, mas stakeholders da indústria ficam atentos a alternativas: empresas como AMD e startups como Cerebras e Graphcore tentam oferecer chips concorrentes; grandes compradores (hiperescalares) experimentam desenvolver chips internos para reduzir dependência – a Microsoft supostamente trabalha num chip AI proprietário, a Amazon tem o Trainium e a Google suas TPUs. No entanto, nenhuma dessas iniciativas reduziu substancialmente a participação de mercado da Nvidia ainda.
No front geopolítico, a Nvidia está no centro da disputa tecnológica entre Estados Unidos e China. Reconhecendo a importância estratégica dos chips de IA, o governo dos EUA impôs controles de exportação estritos que proíbem a venda dos GPUs mais avançados da Nvidia (como A100 e H100) para a China sem licenças especiais. A Nvidia chegou a desenvolver versões “capadas” (A800, H800) para o mercado chinês, mas em 2023 novas restrições fecharam também essas brechas. Tais medidas visam retardar o progresso da IA na China e preservar a vantagem ocidental, mas também têm efeito colateral de consolidar a Nvidia como supridora quase exclusiva dos aliados dos EUA. Por exemplo, empresas chinesas como Alibaba e Baidu agora enfrentam dificuldades para obter hardware de ponta, enquanto companhias americanas e europeias acessam livremente a tecnologia Nvidia – um diferencial competitivo proporcionado por política governamental. A Nvidia, assim, tornou-se uma peça-chave não apenas de mercado, mas de estratégia nacional e internacional. Seu “domínio benevolente” é tolerado pelas autoridades ocidentais em parte porque serve aos interesses geopolíticos de manter esse know-how crítico longe de adversários. Entretanto, se em algum momento a Nvidia abusasse desse domínio (por práticas comerciais injustas) ou se aventurasse em integrar verticalmente serviços de IA, não é improvável que enfrentaria investigações antitruste robustas.
Para a Apple, especificamente, o domínio da Nvidia é um fator complicado. A Apple desenvolve seus próprios chips (série M para Macs, série A para iPhones) e orgulha-se da eficiência deles para IA embarcada, mas esses chips não são adequados para treinar modelos gigantes de linguagem ou visão em larga escala – tarefa para a qual ainda precisaria da Nvidia ou de clouds alheias. Há rumores de que a Apple esteja investindo em seu próprio backend de IA e até em projeto de servidor, mas no curto prazo qualquer iniciativa de IA generativa da Apple, como integrar o ChatGPT no iPhone, dependerá de infraestrutura de terceiros. Isso reforça a situação desconfortável: a Apple, companhia conhecida por integração vertical completa, encontra-se dependente de rivais em nível de software (OpenAI/Microsoft ou Google) e de um fornecedor quase monopolista em nível de hardware (Nvidia). Esse cenário certamente alimenta discussões internas sobre até que ponto a Apple pode tolerar essas dependências ou se precisará, no longo prazo, buscar autonomia também em chips de IA de alto desempenho – o que seria uma empreitada multibilionária e de sucesso incerto.
Práticas Antitruste em Foco: Lock-in, Integração Vertical e Bundling
Os casos acima ilustram várias práticas e estruturas de mercado que estão no radar dos reguladores por possíveis efeitos anticoncorrenciais. Entre os conceitos-chave discutidos no setor de IA estão o lock-in tecnológico, a integração vertical de serviços e o bundling (empacotamento) de produtos e funcionalidades. Analisemos cada um em contexto:
- Exclusividades e Lock-in: Refere-se à dificuldade de um cliente ou parceiro mudar de provedor devido a custos ou barreiras impostas contratualmente ou tecnicamente. No ecossistema de IA, há exemplos claros disso. A parceria Microsoft–OpenAI, por exemplo, envolve exclusividade da OpenAI em usar o Azure como provedor de nuvem. Isso significa que se, hipoteticamente, a OpenAI quisesse rodar parte de seus modelos no AWS da Amazon ou no Google Cloud, não poderia fazê-lo sem violar acordos – esse é um lock-in contratual. Além disso, empresas que passam a usar profundamente certas APIs ou modelos proprietários (como o GPT-4 via Azure OpenAI Service) podem se ver presas a esse ecossistema devido ao alto custo de migrar dados, reprogramar aplicativos ou treinar modelos equivalentes em outro ambiente. O FTC, em seu relatório de janeiro de 2025, alertou que as parcerias entre big techs e desenvolvedores de IA podem “aumentar os custos de troca” para os parceiros de IA e impactar o acesso a insumos essenciais. Lina Khan destacou que tais parcerias podem “criar lock-in, privar startups de insumos chaves de IA e revelar informações sensíveis que minam a competição leal”. No caso da Apple, embora ela esteja na posição de compradora de tecnologia alheia, também há potencial de lock-in no seu ecossistema: se a Apple integrar profundamente o ChatGPT ao iOS, desenvolvedores e usuários podem ficar dependentes dessa funcionalidade nativa, dificultando a entrada ou uso de serviços concorrentes de IA no iPhone.
- Concentração vertical: Ocorre quando uma empresa controla múltiplos elos da cadeia produtiva ou de valor, podendo favorecer seus próprios negócios em detrimento de concorrentes. Na corrida da IA, assistimos a movimentos verticais importantes. A Microsoft agora atua em camadas múltiplas – infraestrutura de nuvem, desenvolvimento de modelos (via OpenAI) e aplicações finais (Office, Windows) – o que lhe dá incentivos e meios para privilegiar suas soluções em todo o pacote. A Apple tradicionalmente é verticalizada em hardware + software + serviços, mas em IA generativa ela temporariamente perdeu a ponta na camada de modelos/serviços, tentando recuperá-la via parceria. A Google também exemplifica integração vertical: detém desde chips (TPU), imensos repositórios de dados (busca, YouTube), modelos próprios (PaLM, Bard, Gemini) até produtos ao consumidor. Essa integração pode gerar condutas anticompetitivas se a empresa usar o poder em um nível para esmagar rivais em outro. Um exemplo concreto: a Google foi acusada pela Comissão Europeia de abusar do Android (sistema operacional móvel) para impor seu buscador e Chrome, oferecendo pacotes obrigatórios aos fabricantes – isso é abuso vertical via bundling. Com IA, poderíamos ver cenários análogos: p.ex., se uma empresa de nuvem negasse ou dificultasse acesso de startups de IA concorrentes porque tem parceria com uma específica; ou se um sistema operacional (Windows, iOS, Android) integrasse fortemente apenas um assistente de IA e dificultasse apps concorrentes. Os reguladores já sinalizaram que exclusividades nas parcerias de IA podem “impactar o acesso a certos insumos, como recursos computacionais e talento de engenharia”, o que é uma preocupação típica de concentração vertical (um provedor dominando insumos críticos).
- Bundling (empacotamento): Trata-se de vincular produtos ou serviços de forma combinada, de modo que o acesso a um produto inclui obrigatoriamente outro, ou confere vantagens indevidas a outro. No contexto de IA, uma questão emergente é o bundling de recursos de IA com plataformas estabelecidas. A Microsoft, por exemplo, anunciou o Windows Copilot, essencialmente colocando um assistant de IA nativamente no Windows 11. Se esse Copilot estiver sempre presente e integrado ao sistema, desenvolvedores de assistentes independentes podem se ver excluídos. Da mesma forma, a incorporação do ChatGPT ao Bing e ao navegador Edge – com destaque na interface – pode ser vista como bundling de IA ao search e ao sistema operacional (já que o Bing está embutido no Windows). A UE tem histórico de forçar a separação de tais bundles (obrigou a Microsoft a oferecer versões do Windows sem o Windows Media Player décadas atrás, por exemplo). Em 2023, a pressão europeia fez a Microsoft anunciar que desmembraria o Microsoft Teams do pacote Office 365 na Europa, após investigação sobre venda casada prejudicando concorrentes de videoconferência. Uma lógica semelhante pode ser aplicada à IA: se funcionalidades de IA passarem a ser determinantes de escolha do consumidor, integrá-las exclusivamente a produtos dominantes pode configurar uma extensão indevida de monopólio. A FTC parece atenta: sua ampla investigação sobre a Microsoft (iniciada nos estertores de 2023) supostamente examina inclusive se os bundles de software da empresa, agora enriquecidos com IA, limitam a competição.No caso Apple, o bundling de IA se manifestaria se, por exemplo, a Apple restringir certos novos recursos de IA apenas aos seus aplicativos ou aparelhos premium, reforçando seu ecossistema fechado. Embora isso faça parte de seu modelo de negócio (ex.: recursos de imagem computacional exclusivos do hardware Apple), no campo de assistentes de IA há interesse público em garantir interoperabilidade e escolha. Reguladores europeus, através da Lei dos Mercados Digitais (DMA), já impõem que gatekeepers como Apple permitam lojas de aplicativos alternativas e interoperabilidade de certos serviços de mensagem. No futuro, pode-se imaginar requisitos de interoperabilidade de assistentes de IA ou proibição de auto-preferência injusta – por exemplo, impedir que Apple ou Microsoft programem suas assistentes para buscar apenas em seus mecanismos ou lojas.
Resumindo, práticas de lock-in, integração vertical e bundling na esfera da IA estão sob escrutínio intenso. Um relatório técnico da FTC em 2025 explicitou que as parcerias de empresas de nuvem com desenvolvedores de IA conferiram aos primeiros “direitos de consulta, controle e exclusividade” e acesso a informações dos parceiros, gerando riscos de dependência e fechamento de mercado. Este cenário espelha preocupações clássicas do direito concorrencial adaptadas a uma nova indústria. Assim, advogados e reguladores agora aplicam conceitos de longa data – como evitar **“lock-in” de fornecedores e impedir “vendas casadas” – a contratos de IA e lançamentos de produtos inteligentes. O objetivo é garantir que a inovação em IA permaneça aberta e contestável: que uma startup com uma ideia revolucionária não seja sufocada porque todas as portas (infraestrutura, distribuição, capital) estão controladas pelos incumbentes através dessas práticas. A efetividade dessa vigilância regulatória somente será comprovada com o passar do tempo, conforme casos concretos forem avaliados e possivelmente litigados, definindo precedentes específicos para o setor de IA.
Regulamentação de IA: Contexto Geopolítico e Comparativo Internacional
A regulação da IA tornou-se uma pauta global, com diferentes abordagens nos Estados Unidos, Europa e Ásia, influenciadas tanto por filosofias jurídicas quanto por interesses geopolíticos e econômicos. Nos EUA, até o momento não há uma lei federal abrangente sobre IA equivalente ao que a Europa promulgou, o que não significa ausência de supervisão – a fiscalização ocorre via órgãos como FTC, DOJ e até CFPB (no caso de viés algorítmico em crédito, por exemplo), aplicando-se leis existentes de concorrência e proteção ao consumidor. Já a União Europeia adotou uma estratégia mais direta e preventiva: em 2024, finalizou o texto do AI Act (Lei de Inteligência Artificial), primeiro arcabouço legal amplo sobre IA no mundo. Esse regulamento europeu segue uma abordagem de classificação de risco, impondo obrigações rígidas para sistemas de IA de “alto risco” (em áreas como saúde, educação, crédito, emprego etc.) e até banindo certos usos de IA considerados inaceitáveis, como vigilância biométrica em tempo real e sistemas de pontuação social cidadã. As multas para descumprimento do AI Act são draconianas, de até 7% do faturamento global anual da empresa– patamar similar às multas do GDPR para violações de privacidade, indicando o peso que a UE atribui ao cumprimento dessas normas.
Essa disparidade regulatória já lembra o “déjà vu” do GDPR vs ausência de lei federal de privacidade nos EUA em 2020, como notado por comentaristas legais. Empresas globais enfrentam o dilema de adotar desde já os padrões mais altos (europeus) globalmente ou tentar segmentar conformidade por jurisdição, o que pode ser custoso e complexo. No âmbito da IA generativa – como chatbots e modelos de criação de imagens – a UE incluiu disposições para que provedores desses sistemas implementem salvaguardas contra conteúdo ilegal, desinformação e outros riscos, além de obrigações de transparência (rotular conteúdo gerado, por exemplo). Os EUA, em contraste, têm avançado via medidas não legislativas: a Casa Branca emitiu diretrizes éticas (Plano para IA Confiável), e em outubro de 2023 o Presidente Biden assinou uma Ordem Executiva sobre IA Segura, impondo exigências de compartilhamento de resultados de teste de segurança de modelos muito avançados (frontier models) com o governo, e delineando padrões para governança de IA no setor público e para fornecedores federais. Entretanto, ordens executivas têm alcance limitado e podem mudar de direção em novas administrações. Não por acaso, o futuro da FTC e de sua postura agressiva em tecnologia tornou-se incerto após as eleições de 2024 – com a perspectiva de mudança de comando, havia relatos de planos de substituição de Lina Khan na presidência da agência. Isso ilustra como, nos EUA, a vontade regulatória sobre IA pode oscilar conforme o clima político, enquanto na UE há um consenso suprapartidário mais consolidado a favor de restrições.
Outro elemento geopolítico fundamental é a competição EUA–China em IA. A China, além de investir pesado em campeões nacionais (Baidu, Alibaba, Huawei, Tencent, SenseTime, etc.), implementou suas próprias regras sobre IA generativa, em vigor desde agosto de 2023. Essas regras chinesas exigem, por exemplo, que conteúdo gerado por IA reflita os “valores socialistas” e proíbem geração de material que ponha em risco a segurança nacional ou difame a reputação do país – em suma, são fortemente voltadas a controle de conteúdo e censura. Há também requerimentos de registro de algoritmos com o governo e responsabilização das empresas por mau uso dos seus modelos. Em termos de antitruste, a China tem historicamente sido mais permissiva com a criação de gigantes tecnológicos nacionais, mas recentemente apertou o cerco sobre empresas de internet domésticas (caso Alibaba/Ant Group, Didi, etc.) em nome de “antimonopólio”. Resta ver como tratará eventuais concentrações no setor de IA – um indicativo foi o veto chinês, em 2023, à aquisição da ARM pela Nvidia, alinhando-se à posição ocidental naquele caso. Porém, de modo geral, a régua chinesa está mais calibrada para garantir que a IA sirva aos propósitos do Estado do que para preservar a competição de mercado.
No meio desse cenário bipolar, outros países e regiões buscam posicionamento. O Reino Unido, pós-Brexit, tenta equilibrar uma postura de incentivo à IA com regulação moderada. O primeiro-ministro britânico sediou em novembro de 2023 uma cúpula sobre segurança em IA, indicando ambição de protagonismo no debate global. O órgão de concorrência britânico (CMA), como vimos, já investiga ativamente o setor sob a ótica de competição, inclusive publicando em 2023 um relatório destacando preocupações com poucos atores controlando modelos fundacionais de IA e infraestrutura associada. Na visão da CMA, há um “conjunto interligado de mais de 90 parcerias” entre as Big Tech na IA que justificam atenção especial. Essa assertividade britânica contrasta com a hesitação de alguns órgãos europeus continentais que, até então, focavam mais em questões de privacidade (via GDPR) ou em iniciativas legislativas amplas (AI Act), sem investigações antitruste concretas de alto perfil em IA.
Por fim, a coordenação internacional será crucial. IA é por natureza transnacional: modelos treinados em um país podem ser acessados globalmente; dados fluem através de fronteiras; e avanços militares em IA de um país geram reações de defesa em outros. Os EUA e UE, apesar de diferenças, têm buscado alinhamento em princípios – por exemplo, a criação de um Código de Conduta Voluntário para provedores de IA generativa, anunciado em 2023, do qual OpenAI, Microsoft, Google e Anthropic são signatários. Esses códigos, porém, são soft law e não substituem a necessidade de vigilância robusta. O desafio geopolítico, portanto, é duplo: (1) internamente, cada bloco regular sem sufocar a inovação que pode garantir vantagem econômica e estratégica; e (2) externamente, evitar uma “corrida armamentista” descontrolada ou padrões tão divergentes que prejudiquem a interoperabilidade e o comércio. No caso específico de Apple, Microsoft e OpenAI – todos atores dos EUA – a questão geopolítica se dá mais na dimensão da competição com empresas chinesas (como as gigantes de IA da China) e na influência sobre mercados globais. Reguladores americanos podem ser cautelosos em não enfraquecer demais suas empresas líderes, para que não cedam terreno a rivais chineses. Já os europeus, sem um equivalente local de peso (não há uma “OpenAI europeia” à altura), tendem a impor regras estritas aos estrangeiros, visando proteger seus cidadãos e abrir espaço para players menores. Essa tensão entre liderança na inovação vs. controle regulatório define grande parte do debate atual.
Parcerias Estratégicas vs. Fusões e Aquisições: Limites e Reflexões Jurídicas
Diante de tantos casos em que parcerias e investimentos estratégicos moldam o mercado de IA, surge uma questão central: essas alianças estão se tornando uma forma de contornar os limites impostos às fusões e aquisições? Tradicionalmente, quando duas empresas queriam unir forças de forma estrutural, elas anunciavam uma fusão ou uma aquisição, sujeitando-se às análises dos órgãos antitruste (como FTC/DOJ nos EUA, CE na UE, CADE no Brasil etc.). Porém, no setor de tecnologia – e especialmente em IA – há uma proliferação de acordos alternativos: participações minoritárias vultosas, joint ventures, acordos de exclusividade, parcerias de distribuição, conselhos compartilhados, cooptação de talentos, entre outros. Muitas vezes, esses arranjos conferem às empresas envolvidas vantagens similares às de uma fusão, mas sem a formalidade (e a potencial objeção regulatória) de uma união societária plena.
O investimento da Microsoft na OpenAI exemplifica essa tendência. Em vez de comprar a OpenAI (o que seria, de fato, improvável dado o status híbrido da organização e os compromissos filantrópicos originais), a Microsoft optou por injetar capital, firmar acordos de exclusividade tecnológica e ganhar influência substancial, tudo isso mantendo a OpenAI como entidade separada. O resultado prático – integração de negócios, alinhamento de estratégias, benefícios mútuos – se aproxima de uma fusão de fato, mas legalmente não configura controle acionário majoritário. Como apontou um relatório da Reuters, autoridades antitruste estão cientes do risco de parcerias serem usadas para “driblar processos obrigatórios de revisão de fusões”. Lina Khan, no anúncio do inquérito de janeiro de 2024, enfatizou que o estudo da FTC buscaria esclarecer se investimentos e parcerias de empresas dominantes com desenvolvedores de IA podem distorcer a inovação ou minar a competição justa. Essa preocupação deixa subentendido que tais acordos poderiam, na prática, substituir uma aquisição que talvez enfrentasse bloqueio se fosse tentada formalmente.
Há também um aspecto de limites jurídicos a considerar: Parcerias e contratos comerciais estão sujeitos principalmente às leis de defesa da concorrência ex post (isto é, se efetivamente causarem efeitos anticoncorrenciais, podem ser desafiados), enquanto fusões são reguladas ex ante (exigem aprovação prévia se acima de certos critérios). Assim, arranjos não societários escapam do crivo ex ante e só seriam impedidos se, depois de implementados, ficasse evidente que ferem a lei antitruste (por exemplo, se configurasem um acordo de não competição ou de repartição de mercado ilegal, ou confecção de monopólio). Essa assimetria pode incentivar empresas a buscarem a via “mais segura” das parcerias. Por exemplo, a Amazon investiu US$ 4 bilhões por uma participação minoritária na Anthropic em 2023, atrelada a um acordo de uso preferencial do AWS. Esse tipo de cooperação dificilmente seria barrada antecipadamente, mas e se, somada a outras semelhantes, ela levar a uma situação onde Amazon, Microsoft e Google cada uma está aliada a um grande desenvolvedor de IA (Anthropic, OpenAI, e talvez um terceiro) e nenhuma startup consegue manter-se independente? Alguns críticos comparam esse cenário a um “feudo” das big tech sobre as startups de IA – cada uma tem seu vassalo, garantindo que nenhuma ameaça externa surja.
Do ponto de vista jurídico-doutrinário, uma questão em voga é: deveriam os órgãos antitruste aplicar a Teoria das Facilidades Essenciais ou regras de conduta para regular essas parcerias quase-integração? Por exemplo, se a OpenAI (com Microsoft) ou a Anthropic (com Amazon/Google) se tornarem tão prevalentes que qualquer novo entrante precise interagir com elas, seria o caso de impor acesso não discriminatório aos seus modelos ou à sua infraestrutura? Até aqui, isso seria considerado intervenção extrema, pois essas startups ainda são novas e não monopólios consolidados. Entretanto, a história da tecnologia mostra uma tendência de “winner takes all” – lembremos do Windows dominando sistemas operacionais, ou do Google em buscas – e os reguladores foram criticados por esperar demais para agir. O contexto atual sugere uma mudança: há uma vigilância preventiva maior quanto a estruturas de mercado que podem cristalizar domínios futuros. A cooperação estreita de Apple com OpenAI, seguida do recuo na questão do conselho diante da pressão, ilustra como até mesmo percepções de conluio ou integração excessiva já geram reações rápidas.
Um tema correlato são as parcerias como substitutas de aquisições bloqueadas. Grandes empresas que enfrentam barreiras regulatórias a fusões diretas podem se contentar em firmar alianças. Por exemplo, suponha que, prevendo oposição, a Microsoft nunca tente comprar a OpenAI, mas mantenha um laço tão profundo que efetivamente controle os rumos da empresa – obtém-se o objetivo de uma aquisição (influência e sinergia) sem acionar os dispositivos legais de controle de concentração. Os reguladores podem tentar mostrar que, nesses casos, mesmo sem aquisição formal, a conduta viola a Seção 7 do Clayton Act (no caso dos EUA), que proíbe aquisições de ativos ou ações que possam reduzir substancialmente a concorrência. Uma interpretação criativa poderia considerar que adquirir direitos contratuais exclusivos e influência de governança equivale a adquirir “ativos competitivamente significativos”. Alternativamente, agências podem recorrer à Seção 5 da FTC Act (para práticas “injustas”) ou ao Artigo 102 do Tratado da UE (abuso de posição dominante) para atacar resultados anticoncorrenciais de parcerias. Contudo, isso é território novo e desafiador – exigiria visão prospectiva e talvez litigância em território menos pacificado.
Vale mencionar que parcerias estratégicas não são inerentemente negativas. Muitas inovações nascem de colaborações entre empresas, compartilhando riscos e conhecimentos. O perigo está quando elas servem para eliminar pressões competitivas que de outra forma existiriam. Por exemplo, se Apple e OpenAI continuarem parceiras por muito tempo, a Apple talvez não tenha incentivo para desenvolver um modelo concorrente interno robusto, e a OpenAI pode priorizar atender parceiros grandes em vez de oferecer serviços amplos ou para terceiros independentes. Similarmente, a Microsoft ao se aliar à OpenAI optou por não investir em sua própria pesquisa fundamental de IA (chegou a fechar parte de seu laboratório de IA, segundo notícias investigadas pela FTC). Isso pode ser eficiente no curto prazo, mas alguns especialistas alertam para riscos de oligopolização: poucas plataformas de IA generalistas controladas por consórcios de grandes corporações.
Em suma, os limites das parcerias como substitutas de fusões ainda estão sendo testados. O acordo informal entre FTC e DOJ para dividir as apurações – FTC focando Microsoft/OpenAI e DOJ focando Nvidia– sinaliza que ambos veem algo de estrutural nesses casos que merece escrutínio comparável a um caso de fusão. Já internacionalmente, autoridades como a CMA mostram disposição de enquadrar contratações ou parcerias como “situações de fusão” quando cabível. Do lado das empresas, a resposta tende a ser uma argumentação de que essas parcerias são pro-competitivas: possibilitam inovação rápida, desafiam incumbentes (Microsoft argumenta que seu vínculo com a OpenAI “habilitou uma das startups de IA de maior sucesso no mundo”), e que a alternativa seria possivelmente a falência ou estagnação dessas startups. De fato, não se pode ignorar que a OpenAI, mesmo com todo o alarde, queimava recursos rapidamente e precisava de capital intensivo para treinar modelos cada vez maiores. A linha divisória entre cooperação necessária e conluio nocivo é tênue, cabendo aos juristas e economistas esclarecerem caso a caso.
Conclusão
A saga da Apple na corrida da IA – desde a vantagem inicial com Siri, passando por anos de silêncio e chegando à pressa em fechar parcerias de última hora com OpenAI e outros – ilustra como nem mesmo o maior empresa de tecnologia pode se dar ao luxo de ignorar um turning point tecnológico. Apple, Microsoft, OpenAI e Nvidia estão entrelaçadas em uma teia competitiva e colaborativa singular: a Apple depende do know-how da OpenAI (e possivelmente da Google) para recuperar relevância em IA; a OpenAI depende do capital e infraestrutura da Microsoft (embora busque ampliar seu ecossistema aliando-se também à Apple); a Microsoft se apoia na OpenAI para desafiar rivais e impulsionar seu negócio de nuvem; e todas dependem da Nvidia na base. Essa interdependência inédita entre gigantes e startups redefiniu as fronteiras do que é competir e do que é cooperar no setor de tecnologia.
Do ponto de vista regulatório e jurídico, vivemos um momento de definições. A FTC e o DOJ dos EUA, junto de contrapartes internacionais (UE, CMA britânica, entre outros), estão em alerta máximo para evitar que a revolução da IA seja capturada por um punhado de empresas dominantes. Já se identificou que parcerias estratégicas podem gerar efeitos antitruste clássicos – lock-in, aumento de custos de troca, acesso privilegiado a insumos e informação sensível, e possível exclusão de competidores. Os casos concretos discutidos – do conselho da OpenAI às contratações da Inflection AI – mostram os reguladores tateando os limites de sua autoridade, seja persuadindo empresas a se afastarem de certos arranjos, seja investigando agressivamente novas formas de concentração.
A Europa, por meio do AI Act, escolheu um caminho de regulação ampla de conteúdo e segurança da IA, complementado por seu já robusto arcabouço antitruste que poderá ser aplicado conforme as situações de mercado se consolidem. Os EUA apostam, por enquanto, na aplicação das leis existentes caso a caso, combinada a estudos de mercado via 6(b) e possivelmente novas orientações. Nesse xadrez, as Big Tech também ajustam suas jogadas: a Apple evita aquisições chamativas e prefere acordos discretos (ou investimentos silenciosos, vide sua presença e recuo no aumento de capital da OpenAI em 2023); a Microsoft aprendeu a não exigir um assento no conselho para não atrair escrutínio, contentando-se com influência de fato; a OpenAI tenta manter uma governança que lhe permita colaborar com múltiplos parceiros sem ser acusada de ser títere de um só; e até empresas como Nvidia, sob os holofotes, procurarão demonstrar compromisso em suprir a todos de forma neutra para evitar convocações ao banco dos réus.
Em última análise, a corrida pela IA não é apenas tecnológica, mas também jurídica e geopolítica. A liderança em IA pode determinar vantagens econômicas e militares entre nações – daí os controles de exportação, os fóruns internacionais e a retórica de “não ficar para trás”. Ao mesmo tempo, essa liderança não pode ser conquistada às custas da competição e do consumidor: há um claro esforço para evitar a repetição do cenário dos gigantes intocáveis da era das Big Tech tradicionais. A história ainda está em desenvolvimento. Nos próximos anos, observaremos se Apple conseguirá equiparar-se aos rivais em inteligência artificial (talvez “desenvolvendo, contratando ou adquirindo” seu caminho até o topo, como previu Gurman), e se o fará de modo compatível com a manutenção de mercados abertos. Veremos também se as parcerias Microsoft–OpenAI e similares se provarão benéficas e inovadoras, ou se emergirão evidências de comportamentos excludentes que forcem ações enérgicas dos reguladores.
Por ora, fica evidente que a vigilância regulatória já influencia as estratégias corporativas: decisões como a saída da Microsoft e Apple do conselho da OpenAI ou o desmembramento de bundles na Microsoft mostram que a ameaça de intervenção é levada a sério nos altos escalões. Esse diálogo tenso entre empresas buscando inovação e governos buscando resguardar a concorrência definirá o ritmo e os contornos da revolução da IA. E, no centro desse palco, empresas emblemáticas como a Apple tentarão provar que, mesmo tendo começado atrás, podem contribuir e liderar responsavelmente o próximo capítulo da revolução tecnológica, sem incorrer nas falhas de ambição desmedida ou miopia regulatória. O mundo jurídico e tecnológico acompanhará de perto cada movimento, ciente de que o que está em jogo é nada menos que o futuro da infraestrutura digital global.
- Colonialismo de Dados: a Geopolítica da Informação
- Apple, OpenAI, Microsoft e a Corrida da IA – Tecnologias, Alianças e Regulação
- Alucinação de IA Generativa e suas implicações no Direito
- A Inteligência Artificial do STF, MarIA: Transparência e Inovação na Justiça Digital
- Como as Sanções Comerciais dos EUA Impulsionaram a Inovação Chinesa em IA: O Caso DeepSeek
REFERÊNCIAS
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